A Pública retoma três tragédias socioambientais e conta o que aconteceu depois que a poeira baixou. Impunidade e acordos lenientes são o resultado mais comum.
Por Jessica Mota, da Agência Pública –
Ednei de Souza comemorava seus 9 anos de idade no dia em que tudo pegou fogo. Na madrugada de 25 de fevereiro de 1984, a Vila São José, conhecida como Vila Socó, em Cubatão (SP), sofreu um incêndio de enormes proporções que matou pelo menos 508 pessoas, possivelmente 700, segundo o que estimou à época o Ministério Público de São Paulo. No Brasil da ditadura militar, foram identificados oficialmente 93 corpos.
O incêndio foi provocado por um vazamento no oleoduto Santos-São Paulo, que transportava gasolina da Refinaria de Capuava, em Mauá, para o Terminal da Alemoa, em Santos, de onde era exportado. A vila fica no caminho desse oleoduto. A maior parte de seus moradores eram migrantes nordestinos atraídos pelas possibilidades de trabalho no complexo industrial de Cubatão. O laudo do médico-legista-chefe do Instituto Médico-Legal estimava como número provável a morte de 300 crianças entre 0 e 3 anos.
O incêndio aconteceu na altura do km 58 da Via Anchieta, onde até hoje está a Vila São José, apelidada “Socó” pela presença dos pássaros no mangue sob as casas de palafita da favela. A gasolina se espalhou nas águas do mangue e da maré. Foi por isso que o fogo irrompeu de baixo para cima, com violência.
“Era uma sexta de Carnaval”, lembra Ednei, que continua, aos 41 anos, a morar na vila. “Nós corremos e depois do incêndio eu voltei pra ver como ficou. Passei aqui e eram muitos corpos perto, num lençol branco, outros não estavam cobertos. Cenário de destruição. Pessoas chorando. Bombeiros tentando pegar os corpos que estavam no meio da lama.”
Dirlene Camilo, a dona Didi, de 78 anos, conta que só teve tempo de acordar os filhos e sair correndo. “Eu só via o céu e fogo. Nós corremos. Meu marido ficou pra, sei lá, pegar documento, pra pegar dinheiro. Ele era pescador e naquele dia tinha vendido muito camarão. Ele queimou. Não morreu na hora. Quando soube, fui lá na Santa Casa e ele tinha morrido”, conta ela na sala da sua casa na Vila Natal, bairro vizinho da Vila Socó, onde foi reassentada depois da tragédia.
O inquérito policial foi instaurado no mesmo dia e a Procuradoria-Geral de São Paulo designou o promotor Marcos Ribeiro de Freitas para assumir a investigação e o processo criminal. Durante um mês, o promotor, hoje aposentado, e seu colega José Carlos Pedreira Passos reuniram documentos sobre vazamentos anteriores, laudos do Instituto Médico-Legal, documentos da prefeitura de Cubatão, plantas das instalações dos dutos e depoimentos – de sobreviventes, testemunhas e funcionários das instituições responsáveis, como a Petrobras e a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp). Finalmente, no dia 4 de junho de 1984, os promotores protocolaram a denúncia na Comarca de Cubatão.
É essa peça jurídica, carregada de informações detalhadas e provas, que concluiu que o incêndio foi causado por falha humana, um “erro operacional”, mas que a tragédia só ocorreu pela negligência e omissão de 24 homens. À frente do rol de denunciados estava Shigeaki Ueki, então presidente da Petrobras e ex-ministro de Minas e Energia do governo Geisel (1974-1979). Havia outras autoridades, como o prefeito-interventor de Cubatão na época, José Oswaldo Passarelli, nomeado pelo governo militar. Ueki participou de diversos governos desde 1964 e foi o primeiro presidente civil da Petrobras.
“A nossa denúncia foi uma peça técnica, juridicamente falando. Promovendo responsabilidade, não só pela falha humana que houve, porque isso não elidia a responsabilidade da Petrobras”, relembra Marcos de Freitas. “Porque são culpas concorrentes. Uma coisa é falha humana, outra coisa é a responsabilidade da empresa, que tanto pode ser na área cível, como foi, como na área criminal, como também foi.”
A falha humana foi constatada em sindicância da própria Petrobras. As válvulas que ligavam as linhas de transporte da gasolina aos tanques não se abriram por “um erro operacional”, ocasionado por “problemas de comunicação”. Mas a “culpa consciente” pelo incêndio saltou aos olhos dos promotores ao examinarem um ofício encaminhado por Ueki ao então governador de São Paulo, Franco Montoro, dois meses antes da tragédia. Ueki alertava para o risco iminente de um incêndio e pedia que fossem tomadas providências para remover as pessoas que viviam na Vila Socó. “Só que ele mandou o ofício e não tomou nenhuma providência, vamos dizer, entrar com uma ação no Fórum pra botar todo mundo pra fora. Ele não fez nada, se omitiu completamente. Foi através de uma culpa consciente, através dessa omissão, por parte da Petrobras, que nós denunciamos a responsabilidade criminal”, explica o promotor. Segundo consta na denúncia, deveria haver uma faixa de pelo menos 30 metros que separasse casas e barracos da área do oleoduto e a atribuição legal de realocar as pessoas era da Petrobras, desde o momento em que assumiu a administração do oleoduto.
Não há registros da resposta de Montoro. Antes mesmo do ofício de Ueki, porém, em 1977, Araken de Oliveira, ex-presidente da Petrobras, havia enviado um ofício semelhante ao ex-governador Paulo Egídio Martins. O ex-governador respondia que a competência era do Serviço Social da prefeitura de Cubatão e que ela já havia elaborado um projeto de “desfavelamento” que tinha financiamento do Banco Nacional de Habitação para construção de 6 mil casas. Mas o projeto nunca chegou à Vila Socó.
A denúncia – que obteve repercussão nacional e internacional – apontava também falhas de manutenção nos dutos. Entre 1971 e 1975, o oleoduto apresentou uma média de um vazamento a cada dez dias. Ele havia sido adquirido pela Petrobras em 1974 – operava desde 1951 – sem que fosse feita uma inspeção para avaliar o sistema. De 1977 até a investigação do Ministério Público, o oleoduto já havia se rompido 19 vezes – 18 por corrosão. A válvula de segurança, que poderia aliviar a pressão que causou o acidente, só foi instalada uma semana após o incêndio.
Ainda assim, ninguém foi preso. Uma semana depois de feita a denúncia, o juiz da Comarca de Cubatão descartou a responsabilidade de sete dos 24 denunciados: o então prefeito Passarelli e mais seis engenheiros. Os demais foram chamados para interrogatório, com exceção do presidente da Petrobras, que conseguiu um habeas corpus por dois votos a um e, depois, o trancamento da ação penal. Sete engenheiros e funcionários da Petrobras foram condenados em primeira instância a um ano e sete meses de prisão. Na mesma decisão, outros quatro foram absolvidos. Nenhuma das autoridades de alto escalão foi condenada. Em agosto de 1986, após recursos, os réus foram todos absolvidos em segunda instância. Passarelli seria prefeito por mais dois mandatos em Cubatão, de 1986 a 1988 e de 1993 a 1996.
No ano seguinte ao desastre, a Agência Estado noticiava a recorrência dos vazamentos nos dutos da Petrobras na Baixada Santista. Segundo o jornal, “houve indenizações irrisórias (só oito por morte), construiu-se apenas 28 casas para os desabrigados, e a Justiça ainda não apontou os culpados. As indenizações às vítimas não ultrapassaram Cr$ 3 bilhões, sendo que, por morte, os oito acordos não chegaram a Cr$ 75 milhões”.
Dona Didi conta que foi reassentada na Vila Natal, onde mora até hoje, dois meses depois do incêndio. Até a casa sair, ficou com os quatro filhos na residência do irmão, no Guarujá. Em dinheiro, recebeu Cr$ 1,5 milhão para ressarcir tudo o que perdeu no incêndio. O valor corresponde atualmente a R$ 10.652,54 (cálculo feito em plataforma do Banco Central, com correção monetária e índice de inflação reajustados). Ela não tem a escritura da casa, apenas a “permissão de morada”, e não escolheu ir para Vila Natal.
“Eu já tava acostumada lá na Vila Socó, tinha medo de mudar de lá”, conta. “Cedo eu ia fechando as portas pros meninos não saírem. Era um mato só, um lixão aí atrás”, lembra enquanto aponta para o fundo da casa na Vila Natal. Ela diz que se acostumou com o cheiro. “A gente que é pobre acostuma com tudo.”
A Vila Socó ainda existe no mesmo lugar, mas já não há mangue nem casas de palafita. Foi urbanizada a partir de 1985 por reivindicação dos moradores. Os dutos que transportam gasolina ainda estão ali, mas agora subterrâneos. Por toda a calçada da área de lazer do bairro existem estacas amarelas que sinalizam a passagem da tubulação.
Apesar de, na época, já existirem uma legislação estadual que normatiza a prevenção e controle de poluição, uma lei federal de 1980 que regula o zoneamento industrial e estabelece diretrizes para o licenciamento de indústrias e a Lei Federal 6.938, de 1981, que instituía a Política Nacional de Meio Ambiente, o desastre chamou atenção para a necessidade de cumprir com rigor a regulação ambiental. Em dezembro de 1984, dez meses depois do incêndio, o então gerente regional da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), Luís Carlos Valdez, fez declarações alarmantes ao jornal A Tribuna. “Se as autoridades não ouvirem o clamor da Baixada Santista, teremos muitas outras tragédias como a da Vila Socó. Talvez piores”, afirmou. No mesmo ano, Passarelli determinou estudos para a criação de uma Secretaria de Meio Ambiente municipal. Em 1985, iniciou-se “um processo de conscientização sobre a vulnerabilidade da região do Pólo Petroquímico de Cubatão”, como aponta histórico da Cetesb. Foi então que a companhia começou a desenvolver um setor de Análise de Riscos.
Pouco se avançou, porém, para corrigir as injustiças cometidas em relação aos atingidos pela tragédia. “Eu lembro que na época o então vereador Dorivaldo Cajé, que era o presidente da Câmara, mediou esses acordos. Acordos em que foram definidas indenizações irrisórias. Só pra se ter uma ideia, e isso está no processo, crianças de até 12 anos não foram indenizadas porque não eram força produtiva”, conta Dojival Vieira, que era vereador eleito pelo Partido dos Trabalhadores no momento do desastre. Hoje, Dojival é jornalista e advogado e integra a Comissão da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil em Cubatão.
“Naquela época, o povo era leigo. Não sabia dos direitos. O pessoal que vinha pra trabalhar, mas não conhecia de direito, na época não sabia nem contratar um advogado. Então, o poder público fez o que quis com o povo”, sublinha o morador Ednei, presidente da associação de bairro entre 2004 e 2008. “Eu trouxe de volta a história [do incêndio]. Eu resgatei essa memória viva do povo”, conta. “A Petrobras não gostou da lembrança. O gerente de comunicação da época falou pra não falar mais do assunto, que isso é coisa passada. Eu falei que não, que eles têm dívida eterna com a Vila São José”, diz.
Em 2014, no aniversário de 30 anos da tragédia, a Comissão da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil em Cubatão, em parceria com a Comissão da Verdade Rubens Paiva, instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), focou os trabalhos no desastre da Vila Socó. Como explica Adriano Diogo, ex-deputado estadual que presidiu a Comissão da Verdade em São Paulo, “a Petrobras sempre foi uma empresa militarizada”, e “Cubatão, que tinha o polo petroquímico, era uma área de segurança nacional”. Portanto, de responsabilidade dos militares [os prefeitos eram nomeados pelos militares], como lembrou o então governador Franco Montoro em entrevista aos jornalistas em Vila Socó, no dia da tragédia: “É preciso não esquecer que Cubatão está sendo considerada área de segurança nacional apenas como uma cidade que não deve escolher o seu governante. Se houvesse uma participação maior da população, nós teríamos uma participação maior na apreciação dos problemas e na solução”, disse o então governador.
A Comissão da Verdade da OAB de Cubatão pediu o desarquivamento do processo de Vila Socó. “Quando nós criamos essa comissão, tínhamos alguns objetivos”, explica o advogado Luiz Marcelo Moreira. “O primeiro era o resgate à memória. O segundo objetivo era traçar a real dimensão dessa tragédia. O terceiro é o porquê da impunidade dos entes envolvidos. Ninguém foi punido. E o quarto, se houve indenização, de que forma foi a indenização? E se existiria ainda direito a alguma indenização. Traçado isso, a primeira coisa que eu fiz foi pedir o desarquivamento desse processo.”
Foram feitas cinco audiências públicas sobre o caso, três em Cubatão e duas na Alesp. Shigeaki Ueki, hoje consultor internacional da área de energia, foi chamado para depor na Comissão da Verdade em São Paulo. Em seu depoimento, em julho de 2014, ele buscou dar o assunto por encerrado. “Nós admitimos logo de início, vamos aceitar a culpa, foi um erro operacional, falha humana, não interessa, e custou uma pequena fortuna para a Petrobras, e indenizamos todos, de acordo com a lei, com a expectativa de vida e tudo mais.”
Desde o fim da Comissão da Verdade, em 2014, a equipe de três advogados estuda como buscar reparação às vítimas. “Nós encerramos essa primeira etapa, e a próxima etapa é montar uma petição inicial com a documentação e levar à OEA [Organização dos Estados Americanos] para que lá seja julgada e analisada essa situação não só da Petrobras, mas do Estado brasileiro.” Moreira se refere à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que pode condenar o Estado brasileiro por violações de direitos humanos. “Se existir uma culpa, seja de qual forma for, que ele [o Estado] seja responsabilizado e indenize as vítimas e os parentes das vítimas. Nós queremos fazer isso ainda este ano”, conclui o advogado.
A Pública fez um pedido pela Lei de Acesso à Informação à Petrobras para obter documentos internos relativos ao desastre da Vila Socó. A Ouvidoria-Geral respondeu que as informações sobre o incêndio já haviam sido encaminhadas à Comissão da Verdade de São Paulo e que, na época em que a comissão requereu tais informações, a Petrobras não localizou a documentação relacionada. A reportagem questionou também a empresa, via assessoria de imprensa, sobre as indenizações, restaurações dos dutos e zona de segurança na Vila Socó. A assessoria informou por telefone que não iria comentar o caso.
12 anos antes, outra barragem em Minas
O estado de Minas Gerais tem 220 barragens de rejeitos minerais classificadas dentro da Política Nacional de Segurança de Barragens. Em 2003, 12 anos antes de romper a barragem do Fundão, no distrito de Bento Gonçalves, também em Minas, outra se rompia na cidade de Cataguases, perto da divisa com o Rio de Janeiro.
Ela represava rejeitos gerados na produção de celulose (chamados de lixívia negra) e fora construída na década de 1980, de acordo com informações do Sistema Estadual de Meio Ambiente (Sisema) de Minas Gerais, pela Indústria Matarazzo de Papéis, posteriormente adquirida pela Indústria Cataguases de Papel e pela Florestal Cataguases, pertencentes ao Grupo Iberpar.
Em resposta aos questionamentos da Pública, o Sisema informa que a Indústria Matarazzo de Papéis operou sempre irregularmente, de 1978 até seu fechamento, em 1993. A empresa se mantinha em atividade “celebrando vários acordos com a Comissão de Política Ambiental (Copam), com o objetivo de solucionar as irregularidades ambientais, porém nenhum dos acordos foi cumprido”. A Indústria Cataguases de Papel, que opera com reciclagem de papel e adquiriu a planta em 1993, só requereu Licença de Operação em 1997. Até 2003, ano do rompimento, a indústria protocolou quatro processos de licenciamento ambiental. “Todos indeferidos por estarem tecnicamente inadequados”, informou o Sisema. Durante 14 anos a empresa operou sem licença, obtida apenas em 2007.
No dia 29 de março de 2003, a “Barragem B”, localizada na fazenda Bom Destino, se rompeu, contaminando com a lixívia negra o ribeirão Cágado, o rio Pomba e o rio Paraíba do Sul, principal fonte de abastecimento de água do estado do Rio de Janeiro. Mais de 500 milhões de litros de lixívia vazaram nos rios, de acordo com o Ministério Público Federal. Os resíduos chegaram a Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, e, em menor proporção, até o litoral de Presidente Kennedy, no Espírito Santo. Durante 11 dias o noroeste fluminense ficou sem abastecimento de água.
O Sisema informou que testes laboratoriais indicaram que os resíduos da barragem não eram tóxicos. Entretanto, uma portaria do Ibama emitida quatro dias após o rompimento da barragem referia-se ao “vazamento de substâncias altamente tóxicas” e proibia a pesca nos rios Pomba e Paraíba do Sul durante 90 dias. As atividades rurais no entorno dos rios ficaram comprometidas. Animais como bois, cavalos e jacarés foram encontrados mortos ao longo do percurso dos rios contaminados, e cerca de 60 espécies de peixes – das 169 então existentes no rio Paraíba do Sul – foram dizimadas, de acordo com um artigo científico de autoria da professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro Verônica Bomfim de Souza Alves.
O procurador da república Eduardo Santos de Oliveira, que à época estava lotado na Procuradoria da República em Campos dos Goytacazes, foi o responsável pelas ações do MPF no caso da Cataguases. A experiência foi um dos fatores para que ele integrasse a força-tarefa de procuradores no caso do rompimento da barragem da Samarco em Mariana. “Um acidente dessa proporção jamais ocorre por conta dessa ou daquela causa. Como regra, é uma soma de omissões ou decisões equivocadas”, ensina. Um exemplo: na época da construção da barragem de Cataguases, já havia soluções melhores para gerenciar os dejetos da atividade industrial. Mas, segundo ele, a barragem seria uma opção economicamente mais barata.
O Ministério Público Federal (MPF) agiu contra a empresa, que teve suas atividades suspensas. Em ação civil pública, pediu indenização e compensação por danos ecológicos. Responsabilizou também o Grupo Matarazzo, dono anterior da propriedade e da indústria de papel e responsável pela construção da barragem. O Ibama e o estado de Minas Gerais foram apontados como responsáveis por omissão. Na denúncia consta ainda que, em 1990, a Indústria Matarazzo de Papéis já havia sido avisada da necessidade de a barragem ser desativada após abril de 1993 – ou seja, dez anos antes do rompimento.
Em 2007, a Justiça Federal no Rio de Janeiro determinou o pagamento conjunto de R$ 170 milhões de indenização por danos ambientais. Os réus entraram com recursos, mas de acordo com o procurador a expectativa é que a sentença saia ainda este ano e seja favorável ao pedido do MPF. Há uma execução provisória em andamento, com a penhora dos bens das empresas.
“A população ribeirinha, no caso os pescadores, na grande maioria foi assessorada pela Defensoria Pública ou por advogados. Houve centenas de ações individuais cobrando das empresas por eventuais danos, tanto em Cataguases quanto em Campos [dos Goytacazes]”, informa Oliveira. “Algumas já tiveram ganho de causa, outras ainda não.”
O MPF também denunciou criminalmente os sócios, ex-sócios e um ex-funcionário das empresas Florestal Cataguases, Indústria Cataguases de Papel, ambas do Grupo Iberpar, e das Indústrias Matarazzo de Papéis por crime de omissão, pela inundação, poluição e por não terem feito o esvaziamento da barragem após o desastre. A possibilidade de rompimento já tinha sido informada à Florestal Cataguases havia mais de três anos antes do acidente, segundo uma nota da assessoria do MPF publicada em seu site na época.
Dois dos então diretores da Indústria Cataguases de Papel, Félix Luis Santana Arencibia e João Gregório do Bem, tiveram prisão preventiva decretada. Arencibia chegou a ser preso, mas tanto ele como João Gregório tiveram liberdade provisória em seguida. A ação criminal referente aos sócios e ex-sócios da Indústria Cataguases de Papel e Florestal Cataguases ainda não teve sentença. O processo que acusava criminalmente a Indústria Matarazzo de Papéis e seus representantes foi trancado por ordem do Supremo Tribunal de Justiça, após recursos dos réus.
Em paralelo às ações judiciais, a Indústria Cataguases de Papel assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal. O acordo estabeleceu ações de recomposição da barragem, recuperação das margens do córrego do Cágado, proteção de nascentes, repovoamento de espécies de peixes nativas e remoção dos resíduos acumulados nas propriedades rurais. Segundo o Sisema, “as ações foram implementadas satisfatoriamente”.
“O TAC também contém uma série de medidas para tratamento dos resíduos remanescentes nos reservatórios das Barragens A e B da Fazenda Bom Destino, de forma a promover a completa desativação das estruturas e recuperação do passivo ambiental”, informa a nota do Sisema enviada à Pública. Segundo o procurador Eduardo Santos de Oliveira, hoje não há mais risco em Cataguases porque as barragens estão vazias.
Para o procurador, que acompanhou tanto Cataguases como Mariana, a postura das empresas continua “lamentável”. “O empreendedor sabe da potencialidade lesiva da obra que ele construiu e da qual ele é dono, sabe dos perigos que a obra que ele executou traz para a população e para o meio ambiente. O que é lamentável mesmo é que, no final das contas, eles não encaminham suas decisões de maneira a preservar a integridade tanto do meio ambiente e do patrimônio histórico, mas principalmente das pessoas”, analisa. “Se um décimo de qualquer medida das que são tomadas depois tivesse sido feito ao longo do tempo da barragem, o desastre nem teria acontecido. Independentemente das obrigações de indenizar, independentemente de eventual sentença criminal, o que é mesmo lamentável é a perda de 17 vidas inutilmente”, fala, ao refletir sobre o desastre da barragem do Fundão, no distrito de Bento Gonçalves, em Mariana.
A Pública tentou localizar representantes da Florestal Cataguases e da Indústria Cataguases de Papel, sem sucesso. Em matéria do portal G1, publicada em novembro de 2015, a advogada da Indústria Cataguases de Papel, Kássia Silveira, afirmou que “a empresa foi multada no valor de R$ 50 milhões, aplicada pelo Ibama. Nós entramos na Justiça contra essa multa e o processo ainda não foi julgado, ainda está em curso. Para recuperar a área ainda gastamos aproximadamente R$ 1,5 milhão”.
Vazamento de petróleo em alto-mar
Foi no dia 8 de novembro de 2011 que a Petrobras notificou a Chevron do Brasil sobre uma imensa mancha de óleo no Campo de Frade, na Bacia de Campos, a uma distância de cerca de 120 km da costa do Rio de Janeiro. Há três meses, a Chevron explorava um poço de petróleo a 2.280 metros abaixo do fundo do mar, como parte de um consórcio em que tem participação majoritária (51,7%), seguida pela Petrobras (30%) e pela Frade Japão Petróleo Ltda. (18,3%).
Foram cerca de 3.700 barris de petróleo cru vazados no mar, ou aproximadamente 588 mil litros, de acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP). Em laudo técnico, o Ibama e a Marinha classificaram o ocorrido como dano ambiental grave em zona de grande sensibilidade ambiental. Entre os meses de julho e novembro, quando ocorreu o vazamento, é grande a presença de baleias-jubarte e baleias-francas do sul na região da Bacia de Campos, que também é rota migratória de diversas aves marinhas. Além disso, mesmo quando não é visível, o vazamento de petróleo cru pode causar interferências em diversos níveis, de alterações celulares à morte de plânctons (organismos microscópicos que servem de alimento a peixes), peixes que nadam em cardumes, como as sardinhas, as anchovas e os atuns, além de mamíferos aquáticos e aves marinhas.
“Nós não tivemos nenhum animal visivelmente contaminado, mas você não pode comprovar que não houve [danos]. Você infere os danos a partir do momento em que existem vários estudos que demonstram que o óleo na água causa poluição. Poluição é dano”, explica Marcelo de Amorim, coordenador de Atendimento a Emergências Ambientais do Ibama. É ele que assina o laudo com a consultora da Gerência de Meio Ambiente da Marinha, Keity Ferraz. O laudo informa também que “os efeitos a longo prazo não são tão aparentes e alguns compostos podem ser bioacumulados ao longo da cadeia trófica podendo trazer efeitos nocivos ao homem”.
A ANP realizou uma investigação para apurar as causas do vazamento. Concluiu que ele havia sido provocado por erro no cálculo de pressão injetada no poço ao ser perfurado e agravado por falta de avaliação dos riscos da operação. No relatório final da apuração, a agência explicita: “O acidente poderia ter sido evitado, caso a Chevron Brasil Upstream Frade Ltda. tivesse conduzido suas operações em plena aderência à regulamentação, em conformidade com as boas práticas da indústria do petróleo e com seu próprio manual de procedimentos. De acordo com a ANP, a Chevron “dispunha de dados e informações suficientes para concluir que a classificação do risco das operações, na forma em que foram executadas, era intolerável”, diz o relatório. Ao todo, os fiscais da ANP apontaram 25 irregularidades (para toda a cronologia do vazamento, leia aqui).
Fernanda Pirillo, coordenadora de Emergências Ambientais do Ibama, explica que na etapa do licenciamento ambiental, antes de entrar em operação, as empresas que realizam produção de petróleo em alto-mar devem demonstrar ter capacidade de resposta. “O Ibama faz o simulado, como a gente chama a avaliação pré-operacional, com mobilização de recursos, e a empresa passando nesse exercício, obtém a licença [ambiental]. A legislação já obriga das empresas a se prepararem em caso de acidentes”, completa.
A Chevron confirmou o vazamento no dia seguinte à notificação da Petrobras, mas a empresa contratada para fazer o controle do poço, Wild Well Control, só foi informada no dia 10 de novembro. Isso deveria ter ocorrido imediatamente por causa do nível de gravidade da situação. O poço só foi controlado no dia 13 de novembro, o sexto dia de vazamento. Quatro meses depois, em março de 2012, foi identificado um novo ponto de vazamento a 3 km do poço. Dessa vez, a quantidade de petróleo foi menor: 25 barris ou aproximadamente 3.974 litros.
A Chevron pagou R$ 25,5 milhões à ANP por causa das irregularidades encontradas e R$ 48,2 milhões ao Ibama por danos ambientais. As multas tiveram um desconto de 30%, previsto em lei.
A Chevron Brasil, a Chevron Latin America, a Transocean Brasil – proprietária da sonda que explorava o poço – e os executivos que representavam as empresas (entre eles, o ex-presidente da Chevron no Brasil, George Buck) também foram alvo de ações do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro. Em virtude dos danos ambientais, o MPF pedia indenização de R$ 20 bilhões por cada um dos vazamentos de petróleo para as três empresas. Em 2013, porém, um acordo, feito pelo Termo de Ajustamento de Conduta, entre as três empresas, o MPF, o Ibama e a ANP encerrou o processo, determinando medidas de compensação equivalentes a R$ 95,1 milhões. Na audiência pública para discutir o acordo, em dezembro de 2012, apesar da avaliação do Ibama, uma apresentação da petrolífera mostra que “não houve dano ambiental relevante” e que “não houve danos relevantes à vida marinha”. Antes disso, as atividades das empresas envolvidas no desastre ambiental haviam sido suspensas pela Justiça. A ANP conseguiu reverter a decisão no Superior Tribunal de Justiça com a justificativa de que ela “poderia causar graves lesões à segurança e à economia públicas”. As empresas voltaram a operar no Brasil, com a ressalva de que não poderiam voltar às atividades no Campo de Frade.
Dezessete gestores da Chevron e da Transocean foram denunciados por crime ambiental e dano ao patrimônio público. George Buck, então presidente da Chevron Brasil, e três funcionários da empresa também responderam por “dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público, se omitir em cumprir obrigação de interesse ambiental, apresentar um plano de emergência enganoso e por falsidade ideológica, ao alterarem documentos apresentados a autoridades públicas”, informou o MPF em seu site. Os acusados chegaram a ter seus passaportes retidos e foram impedidos de deixar o Brasil. As penas variavam de 21 a 31 anos de prisão. Hoje, o processo tramita no Superior Tribunal de Justiça e aguarda decisão.
O acordo das petrolíferas com o MPF, a ANP e o Ibama, assinado em setembro de 2013, prevê uma série de medidas de compensação ambiental e aperfeiçoamento das operações da Chevron em relação à resposta a incidentes como o do Campo de Frade e à avaliação de riscos. O dinheiro e os projetos serão administrados pelo Funbio, organização não governamental que presta serviços de recuperação ambiental, que já começou a receber os depósitos.
As medidas preventivas também começaram a ser executadas. “O monitoramento através de radares já foi instalado e já foi feito aperfeiçoamento dos estudos solicitados, de verificar todos os processos físicos e químicos do óleo até a superfície”, conta Marcelo de Amorim, do Ibama. Ele participou da última reunião sobre os projetos fruto do acordo, no fim do ano passado.
“Quanto aos projetos de natureza compensatória, depois de vários ofícios expedidos ao Ibama, ANP, e tendo inclusive passado pelo crivo técnico de nossa análise pericial da quarta câmara do MPF, dois deles começaram a ser executados há cerca de 4/5 meses”, informa, por e-mail, o procurador responsável por monitorar o cumprimento das medidas, Jaime Mitropoulos. Um dos pontos do acordo é a criação de um website que disponibilize relatórios sobre as ações compensatórias da Chevron, o que ainda não foi feito. “Estaremos cobrando também o cumprimento da cláusula que determina a disponibilização de relatórios na internet”, responde o procurador.
De acordo com Fernanda Pirillo, do Ibama, os projetos que têm editais abertos pelo Funbio para serem implementados são o de conservação da toninha, mamífero semelhante ao golfinho, e um projeto de apoio à pesquisa marinha e pesqueira no Rio de Janeiro. Outros quatro projetos ainda estão em análise pelo Ibama, são eles: conservação e uso sustentável da biodiversidade nas Unidades de Conservação Federais Costeiras e Estuarinas do Rio de Janeiro; implementação de projetos de educação ambiental e geração de renda para comunidades pesqueiras na região norte do Rio de Janeiro; um centro de reabilitação de animais silvestres no estado do Rio de Janeiro e o projeto Aqua Rio.
Procurada pela reportagem com uma série de indagações a respeito dos projetos de compensação ambiental e do cumprimento do acordo firmado judicialmente, a Chevron não quis comentar nada sobre o caso. Em nota, a petrolífera avalia que “agiu rapidamente e de forma responsável, quando aconteceu o incidente no Campo Frade, em novembro de 2011, controlando a exsudação dentro dos melhores padrões da indústria”.
Fernanda, que trabalha há dez anos no Ibama, avalia que desastres como esse têm influenciado a mudança na legislação ambiental. “A legislação foi ficando mais rigorosa e mais específica para os casos de vazamento de óleo. Também percebo que houve um entendimento das empresas de que esses não são mero cumprimento da legislação, e sim um item importante na gestão de seus negócios”, avalia.
A produção de petróleo pela Chevron no Campo de Frade voltou à ativa em abril de 2013 e foi aumentada em março de 2014. (Agência Pública/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site Agência Pública.