Sérgio Lírio, redator-chefe da revista CartaCapital – 

A mítica dos primeiros cem dias de governo nasceu do engenho de Franklin Delano Roosevelt. Maior símbolo da capacidade de intervenção virtuosa do Estado e uma das personagens políticas centrais do século XX, Roosevelt precisava dar um choque de ânimo em uma sociedade destroçada pela Grande Depressão. Em 1933, ao alcançar a marca na Casa Branca, o democrata lançou um pacote de medidas conhecido como New Deal, o novo pacto social que marcaria a história dos Estados Unidos e transformaria um país moribundo na maior potência do planeta. Desde então, tornou-se quase obrigatório a qualquer presidente, em Washington e no Ocidente, ao menos lançar mão de um espetáculo de pirotecnia para marcar o período. Mas não seria assim tão fácil para Roosevelt, embora ele tenha se tornado o único a governar os EUA por três mandatos, até o fim da Segunda Guerra Mundial. Foi preciso, nos anos seguintes, uma longa e extenuante cruzada contra o conservadorismo na Corte Suprema, no Congresso e nas finanças, felizmente vencida pelo mandatário de corpo frágil e espírito forte.

Na segunda-feira 10, Lula completa cem dias de seu terceiro mandato. O Brasil, a exemplo dos EUA da Grande Depressão, anda a precisar de um New Deal, após Bolsonaro e seus comparsas salgarem a terra e demolirem o edifício institucional do País. Como lamenta a historiadora Heloísa Starling em uma entrevista publicada na edição especial de CartaCapital que está nas bancas, “o país do futuro perdeu a dimensão de futuro”. A fratura vai demorar a cicatrizar, a solidão do indivíduo atomizado, caldo de cultura do medo e do rancor, está envolta em uma casca que impede a entrada da luz do contraditório. Bolsonaro foi derrotado, mas o Brasil continua prisioneiro do cercadinho. Libertar o País do trauma é um tratamento de longo prazo. O relançamento de programas sociais bem-sucedidos, entre eles o Bolsa Família e o Mais Médicos, são um importante começo, alvissareiro, porém insuficiente. A capacidade de negociação e a criatividade do presidente da República nunca foram tão fundamentais.

Lá se vão cem dias. Faltam, no entanto, 1360 noites de mandato e o jogo só termina quando acaba. O adversário não descansará. A falta de uma oposição partidária – Bolsonaro vive na corda bamba da cassação pela Justiça eleitoral e a terceira via continua sonho de uma noite de verão – é compensada pela aliança Faria Lima-agronegócio-mídia, mais preparada e poderosa. Como Roosevelt, Lula terá de dobrar as forças sociais reacionárias, fortalecidas desde o impeachment de Dilma Rousseff, se quiser cumprir a promessa de campanha – “colocar os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda”.

Não bastasse o desafio em si, estes foram os primeiros cem dias mais frenéticos da história republicana brasileira. A canhestra tentativa de golpe em 8 de janeiro, a revelação do genocídio Yanomâmi, as Forças Armadas entre a desobediência e a conspiração e as chantagens de Arthur Lira mostram que Lula navega em águas turvas no comando de um transatlântico a deriva. Entende-se o cuidado das manobras, traduzido no arcabouço fiscal apresentado pelo ministro Fernando Haddad, tentativa de acalmar o mercado financeiro e abrir margens à retomada dos investimentos, públicos e privados. A colossal e vergonhosa desigualdade não demorará, porém, a cobrar seu preço. Nem Lula nem o caro leitor podem esquecer: Bolsonaro entregou o Brasil com 33 milhões de famintos e mais de 100 milhões em insegurança alimentar. A fome tem pressa. O petista vive um dilema: precisa de popularidade para implantar seu programa de governo, mas só o sucesso dessas iniciativas lhe garante o apoio popular. Para angústia de muitos e desespero de outros tantos, às vezes parece que só o próprio presidente compreende o quão urgente, definitiva e definidora é a contenda. Um Dom Quixote a se debater contra os moinhos de vento.

Em várias áreas o governo começou bem. Em outras, ainda precisa mostrar a que veio. Não há margem para erros. O fracasso de um terceiro mandato de Lula seria o fracasso do Brasil. Se tudo der errado, os bárbaros entrarão triunfantes pela porta da frente e se sentirão autorizados a levar a cabo o projeto de ruína.

(#Envolverde)