O maior desafio é viabilizar uma política abrangente, envolvendo a sociedade civil em processos de consulta e decisórios na gestão da água.
A gestão de bacias hidrográficas assume crescente importância no Brasil à medida que aumentam os efeitos da degradação ambiental sobre a disponibilidade de recursos hídricos. Em termos de evolução das políticas públicas no Brasil, observam-se importantes avanços no setor ao longo dos últimos 20 anos.
O país tem uma legislação integrada e descentralizada, principalmente com a edição da Lei Federal no 9.433, em 8 de janeiro de 1997, e a criação da Agência Nacional de Águas (ANA). Esta reorganização do sistema de gestão de recursos hídricos devolve o poder para as instituições descentralizadas das bacias, o que demanda um processo de negociação entre os diversos agentes públicos, usuários e sociedade civil organizada. À ANA cabe participar da elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos e prestar apoio, na esfera federal, à elaboração dos planos de recursos hídricos. Estes planos, além de investimentos, incluem ações voltadas ao fortalecimento do sistema de gestão de recursos hídricos da bacia, implantação dos sistemas de informações, de redes de monitoramento e instituições de gerenciamento. Cabe também à ANA a outorga, por meio de autorização, do direito de uso de águas de domínio da União, assim como fiscalizar diversos usos, e arrecadar, distribuir e aplicar as receitas auferidas de cobrança.
Atualmente, na gestão hídrica, enquanto arcabouço conceitual, o termo “governança” representa um enfoque conceitual que propõe caminhos teóricos e práticos alternativos, que façam uma real ligação entre as demandas sociais e sua interlocução em nível governamental. A busca por um aperfeiçoamento da gestão ocorre em razão da compreensão de que existe uma diversidade de situações e que isto representa um desafio para efetivar uma governança das águas, seja em sua origem, objetivos e níveis de alcance.
A adoção da bacia hidrográfica como unidade regional de planejamento e gerenciamento das águas resultou na delimitação de Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cujos órgãos consultivos e deliberativos de gerenciamento são denominados Comitês de Bacias Hidrográficas. O sistema baseado na tríade descentralização, participação e integração, considera principalmente a qualidade e a quantidade das águas por meio de ações que promovam os usos múltiplos dos recursos hídricos. A efetivação do processo de gestão em bacias hidrográficas ainda é embrionária, e a prioridade dos organismos de bacia se centra na criação dos instrumentos necessários para gerir. A lei ainda fortalece a gestão descentralizada de cada bacia hidrográfica, distribuindo atribuições aos comitês, subcomitês e agências, estabelece como fundamento que a água é dotada de valor econômico e institui a cobrança pelo uso do recurso como um dos principais instrumentos de atuação destes órgãos.
Portanto, a fórmula proposta é uma gestão pública colegiada dos recursos, com negociação sociotécnica por meio de Comitês de Bacias Hidrográficas e se reserva à sociedade civil uma responsabilidade central na condução da política e da gestão dos recursos hídricos. Os usuários da água, fundamentalmente, terão que se organizar e participar ativamente dos grupos de gestão, defender seus interesses quanto aos preços a serem cobrados pelo uso, assim como a aplicação dos recursos arrecadados e a concessão justa das outorgas dos direitos de uso. Obviamente, estes acertos e soluções serão conseguidos a partir de complexos processos de negociações e resolução de conflitos.
A lógica do colegiado permite que os atores envolvidos atuem, em princípio, tendo um referencial sobre seu rol, responsabilidades e atribuições, no intuito de neutralizar práticas predatórias orientadas pelo interesse econômico ou político. A dinâmica do colegiado facilita uma interação mais transparente e permeável no relacionamento entre os diferentes atores envolvidos – governos, empresários e usuários. Isto limita as chances de abuso do poder, entretanto não necessariamente da manipulação de interesses pelo Executivo. Isso dependerá, principalmente da capacidade de organização dos segmentos da sociedade civil. Outros riscos são sensivelmente atenuados, como por exemplo, a captura da instituição por interesses específicos, que contrastam com a sua finalidade coletiva.
Para garantir uma participação mais abrangente da sociedade na gestão dos recursos hídricos, faz-se necessária uma redefinição do papel de poder em que se situam os peritos em relação aos leigos. No cotidiano das práticas de implementação da legislação, tem-se configurado redes sociais diversas para coletar informações, formar opiniões, legitimar pontos de vista, que contínua e inevitavelmente implicam redefinições das relações de poder.
O grande desafio é que esses espaços sejam efetivamente públicos, tanto no seu formato quanto nos resultados. A dimensão do conflito lhes é inerente, como é a própria democracia. Assim, os espaços de formulação de políticas onde a sociedade civil participa, marcados pelas contradições e tensões, representam um avanço na medida em que publicizam o conflito e oferecem procedimentos – discussão, negociação e voto – e espaço para que seja tratado de forma legítima.
A criação de condições para uma nova proposta de sociabilidade deve ser crescentemente apoiada em processos educativos orientados para a “deliberação pública”. Esta se concretizará principalmente pela presença crescente de uma pluralidade de atores que, por meio da ativação do seu potencial de participação, terão cada vez mais condições de intervir consistentemente e sem tutela nos processos decisórios de interesse público, legitimando e consolidando propostas de gestão baseadas na garantia do acesso à informação, e na consolidação de canais abertos para a participação que, por sua vez, são pré-condições básicas para a institucionalização do controle social. Não basta assegurar legalmente à população o direito de participar da gestão ambiental, estabelecendo-se conselhos, audiências públicas, fóruns, procedimentos e práticas. Isto implica em mudanças no sistema de prestação de contas à sociedade pelos gestores públicos e privados, mudanças culturais e de comportamento. Dependemos de uma mudança de paradigma para assegurar uma cidadania efetiva, uma maior participação e a promoção do desenvolvimento sustentável.
Havendo vontade política e não se permitindo práticas de cooptação, o papel dos diversos instrumentos de participação na gestão poderão mudar os padrões de governança, estabelecendo novas mediações entre Estado e sociedade civil, baseadas no aprimoramento dos princípios de participação na gestão descentralizada e compartilhada dos recursos hídricos e das políticas ambientais.
* Pedro Roberto Jacobi é professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo, e coordenador do Grupo de Pesquisa GovAgua USP e do TEIA USP – Laboratório de Educação e Ambiente.
**Publicado originalmente no site do Instituto Akatu.