A região mais desigual dá exemplo na luta contra a fome

Uma mãe e sua filha, beneficiárias do Bolsa Família, um dos programas do Brasil apresentado como exemplo mundial para combater a fome. Foto: Pnud
Uma mãe e sua filha, beneficiárias do Bolsa Família, um dos programas do Brasil apresentado como exemplo mundial para combater a fome. Foto: Pnud

 

Santiago, Chile, 18/9/2014 – América Latina e Caribe, a região mais desigual do planeta, alcançou os maiores progressos do mundo na segurança alimentar e se converteu na região com o maior número de países que conseguiram erradicar a fome, o primeiro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).

Porém, as desigualdades sociais e geográficas na região persistem, e as mulheres rurais e os povos indígenas ainda enfrentam altas taxas de insegurança alimentar e pobreza, destaca o informe O Estado da Segurança Alimentar no Mundo 2014 (SOFI2014), que apresenta como exemplo as políticas do Brasil e da Bolívia. O relatório, apresentado no dia 16 em Roma, revela que a proporção de pessoas que sofre subnutrição na América Latina diminuiu de 15,3% no período 1990-1992 para 6,1% entre 2012 e 2014.

“As políticas deram resultado, e todos os grupos foram favorecidos, mas existe um segmento que precisa de maior especificidade no desenho das políticas”, afirmou à IPS Raúl Benítez, representante regional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), com sede em Santiago. “Há setores que precisam que as políticas sejam melhor definidas, mais focadas. É como olhar por uma lupa, mas há coisas que precisam de uma lupa de maior aumento”, acrescentou.

A redução levou a região a alcançar, um ano antes do limite fixado, o primeiro dos oito objetivos traçados pela comunidade internacional em 2000, o de erradicar a pobreza extrema e a fome, cuja meta concreta era reduzir pela metade o número de pessoas subalimentadas no mundo, com relação aos níveis de 1990. Todo um êxito que se sustenta, principalmente, no compromisso político dos governos da região, ressaltou Benítez.

“Ser a região mais desigual do planeta nos impôs desafios adicionais. Conscientes de que o crescimento econômico não resolveria os problemas por si só, os governos implantaram paralelamente dois tipos de política: por um lado fazer crescer as economias e, por outro, apoiar os grupos mais desfavorecidos”, detalhou o representante da FAO.

Benítez recordou que esta foi a primeira região a se comprometer com o objetivo de fome zero mediante a adoção da Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome 2025, que foi reafirmada pelos seus líderes nas últimas cúpulas da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

Catorze países da região já alcançaram a meta, segundo o informe: Argentina, Barbados, Brasil, Chile, Cuba, Guiana, México, Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana, São Vicente e Granadinas, Uruguai e Venezuela. Benítez também acrescentou Dominica. Outros quatro estão bem perto de alcançá-la: Bolívia, Colômbia, Equador e Honduras poderão consegui-la em 2015.

O caso do Brasil foi apresentado como um exemplo para o mundo no informe de 57 páginas, elaborado pela FAO, pelo Programa Mundial de Alimentos e pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida). “Há muitos anos o Brasil vem trabalhando de maneira sustentada para erradicar a insegurança alimentar”, destacou Benítez.

O Brasil implantou programas como o Fome Zero, depois transformado em Plano Brasil Sem Miséria, implementado em 2003 e que se destaca como a maior transferência de renda com fins sociais do mundo. O resultado é que, entre 2002 e 2013, diminuiu em 82% a população brasileira em situação de desnutrição. Agora o país tem 3,4 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, o que corresponde a 1,7% de seus 200 milhões de habitantes.

Elizete Rimas, de 53 anos, e seu filho de 15 são um exemplo dos beneficiados pelo Bolsa Família. Vivem em uma pequena porção de terra em Seropédica, a 70 quilômetros do Rio de Janeiro. Rimas é mãe solteira e está desempregada. Sofre de pressão alta e não pode fazer esforço físico. A renda mensal da família não passa dos US$ 150 mensais, metade deles procedente do programa. “Não tenho renda nem emprego. Quando soube que meu filho tinha direito ao Bolsa Família, há dez anos, o inscrevi. Sou seu pai e sua mãe ao mesmo tempo. Esse dinheiro nos ajuda muitíssimo, posso comprar comida e roupa para meu filo”, contou Rimas à IPS.

Apesar dos avanços, a desigualdade que caracteriza a região persiste em um âmbito sociogeográfico, afetando os sempre mais excluídos: mulheres rurais e indígenas. Segundo as agências da ONU, 40% das mulheres rurais maiores de 15 anos não têm renda própria e a proporção de pobreza e indigência feminina aumentou apesar de a pobreza geral ter diminuído. Os índices de pobreza entre os povos indígenas em alguns casos podem ser até seis vezes maiores do que no restante da população.

A quéchua Delfina Laura e a aymara Flavia Amaru, em uma área rural da Bolívia. As mulheres rurais e indígenas são as mais excluídas dos esforços da América Latina para reduzir a insegurança alimentar. Foto: Franz Chávez/IPS
A quéchua Delfina Laura e a aymara Flavia Amaru, em uma área rural da Bolívia. As mulheres rurais e indígenas são as mais excluídas dos esforços da América Latina para reduzir a insegurança alimentar. Foto: Franz Chávez/IPS

 

O caso da Bolívia, um dos sete países estudados pelo SOFI2014, é apresentado como exemplo de como focar políticas para o beneficio de grupos especialmente excluídos, no que também é mencionado o Equador.

“A Bolívia estabeleceu processos e instituições para todos os interessados, principalmente considerando os povos indígenas que habitualmente eram os mais marginalizados”, apontou Benítez. “Além das especificidades de cada povo, podemos aprender com o compromisso político do governo boliviano com a solução do problema”, acrescentou.

Na Bolívia, o forte enfoque em políticas de segurança alimentar pró-pobres gerou uma rápida diminuição da fome, que caiu 7,4% entre 2009 e 2011, e 2012-2014. A desnutrição crônica em crianças menores de três anos de idade caiu de 41,7% em 1989 para 18,5% em 2012.

Benítez pontuou que a Bolívia “aprofundou suas políticas econômicas e sociais voltadas para os grupos mais vulneráveis”, e explicou que  se “observa uma grande brecha de produtividade, por isso as políticas econômicas de acesso à terra, de financiamento de transferência de tecnologia, estão mais focadas nos produtores menores e mais vulneráveis”.

Por exemplo, os programas de sementes andinas permitiram aumentar notavelmente a produtividade dos pequenos produtores somente pelo fato de serem melhoradas, afirmou Benítez. O caso da Bolívia, acrescentou, é um exemplo de que havendo decisão política o “problema da fome tem solução. Não digo que seja fácil ou simples, nem que possamos resolvê-lo da noite para o dia, mas, quando existe a decisão de atacar o problema, os resultados aparecem”.

Além dos progressos, a região ainda mantém um grande desafio: ser a primeira do planeta onde a fome esteja erradicada totalmente. “Temos muitos condimentos que nos fazem ser otimistas: somos produtores de alimentos, existe forte compromisso político e muita solidariedade nos países da região. O desafio é como acelerarmos esse processo e como os intensificar e nos coordenarmos melhor para que possamos ser a última geração de latino-americanos e caribenhos a conviver com a fome”, destacou Benítez Envolverde/IPS

* Com colaboração de Fabíola Ortiz (Rio de Janeiro).