“Embora parecesse ser um hábito comum, conosco não dava muito certo, sobretudo porque só começávamos a fazer as malas um pouco antes de o trem entrar na estação. E aí naturalmente já estávamos aflitos e mal tínhamos esperança de alcançar o trem, muito menos de conseguir bons lugares” Franz Kafka.
O desenvolvimentismo é a religião dos países periféricos. Sem a fé sobre as possibilidades do desenvolvimento não há recurso, exceto aceitar a “administração competente” do subdesenvolvimento e, em conseqüência, realizar uma digestão moral da miséria e da exploração de milhões de seres humanos que são simplesmente descartáveis no sistema.
Por esta razão compreende-se a força histórica do desenvolvimentismo na sociedade brasileira. É possível entender também as razões do otimismo que dominou quase todo o segundo mandato do presidente Lula e o fato nada desprezível de que a hegemonia lograda em seu governo foi de tal ordem que o sistema político partidário colapsou. De fato, nem mesmo com grande esforço é possível encontrar grandes diferenças entre os principais partidos políticos brasileiros naquilo que é essencial à manutenção da ordem.
Esta homogeneização do sistema partidário expõe a fraqueza do liberalismo, pois na atual situação não há alternativas reais em termos eleitorais. Todos os gatos – pelo menos os grandes – são pardos! A ampla base de apoio parlamentar no Congresso Nacional, a união desinibida entre conservadores e liberais, a reconciliação de antigos adversários e a aliança entre empresários e trabalhadores revela, de maneira inequívoca, que o processo de acumulação de capital logra contemplar, além dos interesses dominantes, também, e ainda que em menor medida, as classes subalternas. Neste contexto, o desenvolvimentismo representa a ideologia necessária que molda os interesses em disputa, especialmente em sociedades marcadas pela abissal desigualdade que mesmo com políticas sociais praticamente não cede.
A crise global do capitalismo iniciada em setembro de 2008 reforçou a ideologia desenvolvimentista na periferia do sistema. A demanda por matérias primas, a elevação do preço da terra e o endividamento estatal – manifesto na explosão da dívida pública interna – criaram mecanismos de acumulação apropriados às distintas frações do capital, que terminaram por moldar uma importante aliança de classe no país. Não seria a primeira vez que a crise global do sistema capitalista, cujo epicentro está nos países centrais, permitiria um fôlego aos países periféricos. A experiência histórica revela de maneira clara que o impulso não será duradouro.
O anúncio recente sobre a taxa de crescimento do PIB, repetida com insistência pela totalidade dos meios de comunicação, é incapaz de indicar que o pacto de classe pode criar força suficiente para iniciar uma estratégia de superação do subdesenvolvimento; ao contrário, é precisamente este pacto que aprofunda as características mais nocivas de nossa formação social, especialmente claro em relação à dependência científica e tecnológica e à manutenção da super-exploração da força de trabalho. A pauta de exportação brasileira ilustra com perfeição a posição do país na divisão social do trabalho e é notório que o peso das empresas multinacionais segue crescendo na estrutura produtiva do país.
O “alerta” de setores perdedores da indústria nacional e a pálida consciência liberal acerca dos perigos da “desindustrialização” expressam, na verdade, a incapacidade da burguesia brasileira em enfrentar o aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento. Na prática, a gritaria sobre o “retrocesso industrial” é apenas um subproduto do desenvolvimentismo, pois as frações do capital estão acumulando riqueza enquanto “reclamam”. A classe dominante divulga a fé no desenvolvimentismo enquanto ganha rios de dinheiro.
Afinal, se estivéssemos diante de um acentuado processo de desindustrialização, como entender a timidez ou mesmo a passividade política dos empresários? É sintomático que as preocupações do empresariado se resumam a considerações inúteis sobre a “inadequada” valorização do câmbio, a ameaça de retorno da inflação e a insistência sobre a necessidade de redução das despesas do governo. Todos ganham, sem dúvida, mas a hegemonia é financeira!
A imprensa forma a opinião de que a austeridade “voltou” com o corte de 50 bilhões de reais no orçamento, como se no período anterior estivéssemos vivendo na fartura. Diante do corte, os desenvolvimentistas apenas exibiram um sorriso amarelo enquanto a ameaça da inflação é o fantasma que mantém o povo sob chantagem e ao mesmo tempo assegura super-lucros aos empresários. A elevação das taxas de juro e o conseqüente “aperto” fiscal neste início de ano, além de reforçarem a ideologia da austeridade, garantem a remuneração dos títulos da dívida pública e implicam em maior endividamento estatal. Mas o dado relevante é que a medida reforça o controle da política econômica pelos rentistas.
O governo anterior não poderia ter tomado tais medidas, já necessárias antes da eleição, da mesma forma que a presidente Dilma não poderia adiá-las, caso contrário o pacto de classe explodiria. De resto, a oscilação entre medidas típicas do neoliberalismo com pitadas de ações pretensamente keynesianas permite às forças que apóiam a presidente Dilma manter a ilusão de que o rumo do governo esta realmente em disputa – entre desenvolvimentistas e neoliberais –, tal como afirmava Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda de FHC.
Os defensores do governo se apresentam como se o governo vivesse um dilema faustiano (“duas almas lutam por meu ser”), insinuando a “existência de duas tendências no núcleo de poder associado à presidente, uma de caráter neoliberal-fundamentalista e outra liberal-desenvolvimentista”, tal como um apologético defensor de FHC escreveu em 2001 para justificar a direitização do sociólogo eleito presidente. Enquanto esta “disputa” é turbinada como meio para alimentar as paixões políticas na imaginação do povo, o pacto de classe estabelecido em 1994 nas entranhas do Plano Real se mantém intacto, ainda que com as fissuras tradicionais.
Enquanto persistam os efeitos destrutivos da crise global, o aumento da demanda pelas matérias primas e a conseqüente elevação de seu preço e a elevação das taxas de juros, alguns países da periferia seguirão fazendo de conta que estão imunes à turbulência global. Certamente, será possível manter alguma estabilidade da moeda, programas sociais com alcance limitado e um PIB eventualmente expressivo, como o recentemente anunciado (7,5%). Mas é igualmente certo que a grande transformação que o país necessitaria para deixar de ser um gigante com pés de barro se afasta cada dia mais, entre outras razões pelo “êxito” conjuntural dos dois últimos governos.
*Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e membro do Núcleo de Estudos Latino-Americanos.
**Publicado originalmente no Correio da Cidadania.