Brasil precisa dobrar número de pacientes com aids tratados

Hoje, no Brasil, cerca de 250 mil portadores do HIV, vírus causador da aids, recebem gratuitamente do Sistema Único de Saúde (SUS) os medicamentos antirretrovirais para o tratamento da doença. Entretanto, o especialista em saúde pública Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), defende no livro Coquetel: a incrível história dos antirretrovirais e do tratamento da aids no Brasil que o país deve duplicar o número de pacientes tratados e ampliar o acesso aos testes de detecção do HIV, para permitir o diagnóstico e tratamento precoce da doença e reduzir a proliferação do vírus.

O livro, lançado em dezembro do ano passado, é baseado em pesquisas realizadas na FMUSP sobre o histórico do desenvolvimento dos antirretrovirais e da mobilização dos pacientes e da sociedade para que o governo implantasse sua distribuição pelo SUS. Scheffer explica que o vírus HIV, para se reproduzir, utiliza-se das células CD-4 (linfócitos), que protegem o organismo contra infecções. “Quando a aids tornou-se uma epidemia, no inicio dos anos 1980, os médicos limitavam-se a acompanhar a história natural dos pacientes, que morriam de infecções oportunistas, provocadas pela destruição do sistema imunológico pelo vírus”, diz. “O primeiro medicamento conta o HIV, o AZT, começou a ser utilizado em 1986, mas o tratamento era pouco eficaz, mesmo quando combinado com outra medicação, na chamada terapia dupla, surgida em 1991.”

A eficácia do tratamento aumentou somente a partir de 1995 com o aparecimento de antirretrovirais mais potentes. “São os chamados inibidores da protease, uma das cinco classes desses medicamentos, que atuam em etapas específicas da reprodução do HIV, impedindo sua replicação e recuperando o sistema imunológico”, afirma Scheffer. “Como é necessária a combinação de pelo menos três medicamentos, batizou-se o tratamento de ‘coquetel’, que tem evoluído na diminuição dos efeitos adversos e do número de doses diárias”. Em todo o mundo, já foram lançados mais de 30 antirretovirais, que fizeram a aids passar de doença fatal a crônica entre os pacientes que aderem ao tratamento.

Mobilização

No Brasil, Scheffer afirma que o aparecimento da aids coincidiu com a mobilização da sociedade pela “reforma sanitária”, que levou a criação do SUS, na Constituição de 1988. “Antes disso, o Ministério da Saúde já havia criado um programa de aids, ampliando as iniciativas de alguns governos estaduais, como o de São Paulo”, aponta. “A atuação das pessoas afetadas pela doença, reunidas em Organizações Não-Governamentais (ONGs), inclusive por meio de ações judiciais, contribuiu para a implantação da distribuição gratuita dos antirretrovirais pelo SUS, tornada obrigatória pela Lei 9.313, de 1996”, destaca.

“Houve muitos avanços nesse processo, mas também muitos riscos de retrocesso, como desabastecimento, falta de medicamentos, altos custos, o que obrigou a realização de negociações de preços com laboratórios multinacionais , quebra de patente e produção nacional de genéricos”, conta Scheffer. O SUS chega em 2013 distribuindo medicamentos para o tratamento de 250 mil portadores do HIV. Dos 21 medicamentos disponíveis, 10 são produzidos no Brasil. “ Mas a baixa capacidade nacional de produção torna os genéricos brasileiros às vezes mais caros que os medicamentos de marca”, ressalta o professor.

Para aumentar o número de pessoas em tratamento, o professor considera indispensável ampliar o acesso ao teste rápido de HIV – tecnologia já disponível no SUS. “O Brasil ainda apresenta um índice elevado de diagnósticos tardios de aids e em muitos casos o paciente só começa a ser tratado quando já apresenta infecções oportunistas”, destaca. “Anualmente são registradas no País, em média, 11 mil mortes em consequência da aids. Boa parte podia ser evitada.”

Tratamento

Scheffer aponta que o aumento do número de pacientes tratados ajudará a reduzir a transmissão do vírus, e consequentemente, o número de casos da doença. “A partir de 2008, a comunidade científica começou a discutir o uso dos antirretrovirais para prevenir a transmissão do HIV”, afirma. “No ano passado o governo federal alterou o indicador de contagem de linfócitos necessário para iniciar o tratamento, de modo que seja iniciado mais precocemente”.

O professor observa que a ampliação do acesso aos antirretrovirais obrigará o Brasil a manter a atenção com as questões de custos, patentes e produção de medicamentos genéricos. “No livro, é demonstrado que para garantir a sustentabilidade do programa brasileiro de aids, será necessária melhor regulamentação do processo de incorporação dos antirretrovirais, a começar pelas pesquisas clínicas, consenso terapêutico, mecanismos de registro, ações judiciais, atuação dos médicos e das empresas farmacêuticas”, destaca.

Formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Scheffer fez especialização em Saúde Pública pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e realizou mestrado, doutorado e pós-doutoramento no Departamento de Saúde Coletiva da FMUSP, onde hoje é professor. O especialista em saúde pública também preside o Grupo Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de aids (Pela Vidda-SP).

O livro Coquetel: a incrível história dos antirretrovirais e do tratamento da aids no Brasil, foi lançado em 11 de dezembro pela editora Hucitec, em parceria com a Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime). O lançamento contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e dos Programas Nacional e Estadual de DST-aids, dentre outras instituições. A obra tem 216 páginas e custa R$40,00.

* Publicado originalmente no site Agência USP.