Democracia à vista na Líbia?

Muçulmano praticante, Mahmud Jibril chama para um diálogo as minorias, como os amazigh, os tuaregues e os islamitas fundamentalistas. Foto: AFP

Quem diria? A Líbia, país brutalizado por 42 anos de ditadura e onde a perspectiva de uma democracia laica era impensável, pôs um fim na onda de vitórias de legendas radicais muçulmanas. O povo, segundo resultados parciais das legislativas realizadas no sábado, escolheu Mahmud Jibril, líder da Aliança de Forças Nacionais (AFN), a qual defende a unidade dos demais partidos políticos.

Em miúdos, diante das vitórias de partidos islamitas no Egito e na Tunísia, a Líbia demonstra que existe uma saída laica, ou pelo menos moderada, para as insurreições que, mundo árabe afora, derrubaram déspotas por anos cortejados por hipócritas líderes ocidentais.

A AFN teria obtido 80 das 200 cadeiras da Assembleia Nacional encarregada de dirigir uma nova fase de transição. Oito meses após a morte de Muammar Kaddafi, 2,7 milhões de líbios tiveram a oportunidade de ir às urnas para participar de eleições livres.

Os islamitas eram representados por duas agremiações: o Partido da Justiça e da Construção (PJC), braço da Irmandade Muçulmana, e o Al-Watan, dirigido pelo controverso ex-chefe militar de Tripoli, Abdelhakim Belhai.

Para se ter uma ideia de quem eram os candidatos islamitas, Belhai esteve com Bin Laden nas prisões da CIA no Afeganistão. Com o colapso do regime de Kaddafi, foi um dos primeiros rebeldes a adentrar Tripoli. Norte-americanos e franceses lhe forneceram armas, a despeito de seu passado.

No entanto, a Primavera Árabe, ao contrário do que previam vários experts, não gerará somente integrantes da Irmandade Muçulmana ou de partidos como o Al-Watan. E o que queriam esses observadores conservadores, incluindo considerável fatia da arcaica esquerda brasileira, a pregar o perigo de um mundo árabe sob o comando de fundamentalistas? Manter no poder o ditador Kaddafi, responsável pela tortura e morte de centenas de milhares de opositores líbios?

Para numerosos líbios, Jibril, diga-se, também não é flor que se cheire. Em 2007, foi ministro da Economia de Kaddafi. Mas quem não trabalhou para Kaddafi? Ademais pesa a favor de Jibril o fato de que ele renunciou ao regime ditatorial. À época, ele trabalhava para Saif al-Islam, o filho de Kaddafi que propunha uma nova Carta. Jibril preferiu deixar o governo quando ficou transparente que Saif não pretendia incluir reformas na nova Constituição.

E, no início da insurreição contra Kaddafi, Jibril tornou-se, durante sete meses, premier do Conselho Nacional de Transição (CNT).

Mahmud Jibril, de 60 anos, estudou Ciências Políticas e Econômicas no Cairo. Fez mestrado na Universidade de Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos, onde foi professor. É muçulmano praticante, mas mesmo assim chama para um diálogo as minorias, como os amazigh, os tuaregues e os islamitas fundamentalistas.

Jibril quer, inclusive, um diálogo com os separatistas, estes insatisfeitos com a alocação de cadeiras na Assembleia: cem para o Oeste, 60 para o Leste (onde se encontra 80% das reservas de petróleo) e 40 para o Sul.

Jibril, carismático embora sem senso de humor, é considerado um pragmático. É visto como um homem experiente e teve o bom senso de formar uma coalizão no momento em que os líbios não estão interessados em homens fortes (leia-se autoritários) no poder.

Ajuda o fato de Jibril integrar a poderosa tribo warfalla. Os warfallas são ambiciosos, fazem carreiras em todos os campos. Frequentam universidades estrangeiras, tornam-se banqueiros, professores, etc. Serviram Kaddafi, mas apoiaram Jibril.

Num país sem sociedade civil e partidos políticos – legado de Kaddafi –, tribos tiveram mais poder nas legislativas do que os islamitas. No entanto, não podemos esperar um futuro transparente para a Líbia: diferenças regionais e rivalidades não desapareceram com a queda de Kaddafi.

* Gianni Carta é editor do site de CartaCapital. É jornalista e cientista político formado pela Universidade da Califórnia e mestre em relações internacionais pela Universidade de Boston. Foi correspondente da CartaCapital na Europa durante 17 anos. Em seus mais de 20 anos no exterior, também foi correspondente da IstoÉ, Diário do Grande ABC, repórter especial da BBC World Service, da rede de tevê norte-americana CBS e do semanário GQ (Europa). Contribuiu para, entre outros, The Guardian e Radio Five Live. Seu último livro é Às Margens do Sena (com Reali Jr., Ediouro, 2007).

** Publicado originalmente no site Carta Capital.