Internacional

Chuva afeta moradores pobres de Assunção

Rua em um bairro de classe média no sul de Assunção, onde as vítimas das inundações em BañadoSur improvisaram um abrigo, após terem suas casas inundadas pela cheia do rio Paraguai. Foto: Mario Osava/IPS
Rua em um bairro de classe média no sul de Assunção, onde as vítimas das inundações em BañadoSur improvisaram um abrigo, após terem suas casas inundadas pela cheia do rio Paraguai. Foto: Mario Osava/IPS

Por Mario Osava, da IPS – 

Assunção, Paraguai, 30/3/2016 – Néstor Colman recorda, aos 69 anos, ter sofrido nove cheias do rio que o expulsaram de Bañado Sur, o pobre bairro da capital do Paraguai onde nasceu e sempre viveu. “Um recorde”, disse, ironicamente. Ele é um dos mais veteranos nos chamados “refúgios”, conjuntos de casebres improvisados, de madeira fina e frágil, erguidos em praças, ruas, campos esportivos e qualquer espaço possível em Assunção, para acolher desde novembro os deslocados pelas inundações em bairros próximos ao rio.

Com o violão pendurado no ombro e suas brincadeiras, Colman parece suportar sem amargura o drama que afeta os mais de cem mil habitantes dos banhados, os bairros onde vive um quinto da população da capital paraguaia, a maioria pobre, nos mangues às margens do rio Paraguai.

“Toco e canto como voluntário nas igrejas católicas de seis ou sete comunidades”, contou à IPS. Para ter alguma renda, ampliou sua casa provisório com um pequeno comércio. “Vendo de tudo, menos bebida alcoólica, porque se vendesse as pessoas viriam, tomariam uma garrafa e ficariam, sem ter como retirá-las”, afirmou. Com uma filha e dois netos, “todos do Bañado”, luta há cinco anos por uma pensão, depois que caiu do telhado e machucou a coluna vertebral.

Em Bañado Sur, uma extensa área de terras baixas entre a cidade e o rio, no passado distante viviam umas poucas famílias, “mas há cerca de 30 anos chegaram muitos, para viver do lixão”, indicou Colman. Trata-se de um lixão a céu aberto, instalado ali para receber os dejetos urbanos, onde milhares de coletores têm permissão para recolher objetos de valor ou recicláveis, detalhou Cleto Pérez, um dos fundadores do Movimento 1811, formado por jovens de Bañado Sur, que usa como nome o ano da independência.

Boa parte da população local se divide em coletores ou recicladores. Estes recolhem dejetos nas ruas, explicou Pérez, uma das vítimas entrevistadas pela IPS, enquanto os primeiros têm que pagar o equivalente a US$ 580 por uma autorização para revirar o lixão.“Os vizinhos nos tratam mal”, queixou-se o reciclador Edgar Acuña sobre os donos das casas de classe média no bairro onde foram instalados os abrigos para as vítimas das inundações. “Digo que para eles é melhor eu trabalhar do que roubá-los”, afirmou.

 Néstor Colman, um decano dos afetados pelas cheias do rio Paraguai, em BañadoSur, em Assunção, ao lado de Cleto Pérez, fundador do Movimento 1811, que organiza as lutas dos moradores desse bairro. Atrás, o pequeno balcão de Colman, em um dos improvisados abrigos dos que foram expulsos pelas águas na capital paraguaia. Foto: Mario Osava/IPS

Néstor Colman, um decano dos afetados pelas cheias do rio Paraguai, em BañadoSur, em Assunção, ao lado de Cleto Pérez, fundador do Movimento 1811, que organiza as lutas dos moradores desse bairro. Atrás, o pequeno balcão de Colman, em um dos improvisados abrigos dos que foram expulsos pelas águas na capital paraguaia. Foto: Mario Osava/IPS

Uma queixa é que ele acumula papelão, vidro, plásticos e metais na calçada, por não ter o mesmo espaço que tinha em sua casa do Bañado para armazená-los, antes de vendê-los em sua “moto-carga”, uma motocicleta com um carro acoplado para transportar os materiais.“Fazemos reuniões semanais nos abrigos para discutir e fixar regras, como não tocar música alta à noite”, disse Pérez. O barulho e as bebedeiras são os motivos mais frequentes de queixas dos vizinhos do bairro, onde foram instalados dois refúgios, um na praça, com 77 famílias, e outro em uma área descampada, com 56, acrescentou.

“Vim do Bañadopor pouco tempo, por causa da minha mãe. Ela morreu, e eu fiquei”, contou Maria NimiaFalcón, uma tecelã artesanal que vive no BañadoSur há 12 anos, procedente de Lambaré, cidade próxima ao sul de Assunção. Com sua produção caseira de tapetes, mantas e outras peças, sustenta quatro filhos.“Meu medo é que venha mais água”, confessou, recordando as duas inundações nas quais “perdeu tudo”.

Maria pede por mais ajuda do governo, prevista legalmente, e uma “casa digna, melhor se for no Bañado, porque no outro lado não teremos trabalho, seria impossível viver”.Seu temor se justifica pelo fenômeno El Niño/Oscilação do Sul (Enos), ao qual se atribui as chuvas que fizeram o rio transbordar, especialmente em dezembro. A meteorologia prevê novas cheias “até o final de julho ou começo de agosto”, segundo David Avendaño, administrador de operações da Secretaria de Emergência Nacional (SEN).

Uma das muitas ruas de Bañado Norte que ainda permaneciam inundadas e intransitáveis em março de 2016, semanas depois da cheia do rio Paraguai, na capital paraguaia, que obrigou cerca de 14 mil pessoas a deixarem suas pobres moradias. Foto: Mario Osava/IPS
Uma das muitas ruas de Bañado Norte que ainda permaneciam inundadas e intransitáveis em março de 2016, semanas depois da cheia do rio Paraguai, na capital paraguaia, que obrigou cerca de 14 mil pessoas a deixarem suas pobres moradias. Foto: Mario Osava/IPS

As mais de 20 mil famílias que vivem nos mangues ribeirinhos de Assunção se dividem entre Bañado Norte, Chacarita (no centro) e Bañado Sur. Desse total, 13.454 tiveram que deixar suas casas e se alojarem em 143 refúgios e albergues, disse à IPS o funcionário da SEN, criada em 2005 como órgão para a gestão de desastres, vinculado à Presidência do país, que tem uma população de 6,8 milhões de pessoas. Uma minoria escapou das águas ou pôde voltar logo para suas casas para viver em áreas mais altas, embora vulneráveis a cheias mais fortes.

Duas décadas sem inundações graves animaram os migrantes chegados do campo aconstruírem suas casas nas partes mais baixas e os moradores tradicionais a melhorar suas casas, com reformas, ampliações e aparelhos domésticos mais caros. Por isso as perdas foram piores.O novo ciclo de inundações começou em meados de 2014. Com o Enos, fenômeno que aquece as águas do Oceano Pacífico e afeta o clima em todo o mundo, a cheia do rio Paraguai se intensificou desde novembro e se prolongou com altos e baixos por mais quatro meses, deixando os ribeirinhos angustiados.

Para Benita Falcón, a vida em um refúgio, em 2014, foi tão sofrida que desta vez decidiu resistir em seu bairro, em uma casa na parte alta, transformada em ilha. “Era uma convivência sem respeito, uma semana sem água potável, nem banho ou eletricidade, um mês sem assistência do governo”, recordou.

“Saíamos em um bote quando necessário, enfrentamos tempestades, chuvas e cobras invadindo a casa”, contou Benita, de 48 anos, seis filhos e seis netos. Do BañadoSur se mudou para Bañado Norte há 27 anos, para se juntar ao marido. Além de recicladora nas ruas, cria porcos, galinhas, vacas. “A cultura no Bañadoé rural”, afirmou.

“Não existe uma política de Estado para os Bañados, não há prevenção de catástrofes, já se sabia sobre o El Niño e não foram tomadas medidas, nem organizados abrigos”, lamentou Maria Garcia, “nascida e crescida” no Bañado Norte. Com 44 anos e dois filhos, é coordenadora local da Cobañados, uma rede de dez organizações comunitárias. Sua casa está inacessível pela rua ainda inundada, a poucos metros de uma lagoa que antes era a quadra comunitária. Ela preferiu se abrigar em casa de familiares, na vizinha cidade de Loma.

Abaixo, casas destruídas pelas inundações em Bañado Sur, um dos bairros de população majoritariamente pobre nas margens do rio Paraguai, em Assunção. Ao centro, os barracos erguidos pelos que se negaram a deixar a área e, ao fundo, o lixão que atraiu muitos moradores para este mangue com recorrentes inundações. Foto: Mario Osava/IPS
Abaixo, casas destruídas pelas inundações em Bañado Sur, um dos bairros de população majoritariamente pobre nas margens do rio Paraguai, em Assunção. Ao centro, os barracos erguidos pelos que se negaram a deixar a área e, ao fundo, o lixão que atraiu muitos moradores para este mangue com recorrentes inundações. Foto: Mario Osava/IPS

“Ajudamos os desalojados com materiais para a casa e alimentos para todos, colchões para os que precisam, e todos dispõem de água e luz”, declarou Avendaño. A solução definitiva seria o reassentamento em outras áreas, como o município de Itauguá, 30 quilômetros a sudeste de Assunção.Com ajuda da ONU Habitat e outras agências da Organização das Nações Unidas (ONU), da cooperação Europeia e dos Estados Unidos, serão construídas mil moradias ao lado do Jardim Botânico, no norte da capital paraguaia, anunciou o administrador. “Mas muitos não querem sair dos Bañados”, admitiu.

Além da discrepância sobre a assistência oficial, a Cobañados defende como solução definitiva que a Avenida Costanera, que já tem 3,8 quilômetros e se prolongará por mais 22, seja construída próximo da margem, como um muro de defesa costeira protegendo os Bañados.

Com comportas e bombeamento, com se fez na Holanda e em outras cidades paraguaias, como Pilar e Concepción, se preservaria os bairros inundáveis e sairia muito mais barato do que encher os mangues, elevando e o solo e construindo tudo, como pensa o governo. Além de cara, a proposta oficial poderia expulsar definitivamente os moradores dos Bañadose destinar a área a moradores mais ricos e a empresas. Mas “é pouco sensato, alteraria o ecossistema de forma terrível”, criticou Elías Díaz Peña, coordenador da organização ambiental Sobrevivência. Envolverde/IPS