Griots, os guardiões da história oral

[media-credit name=”Igor Ojeda” align=”alignleft” width=”180″][/media-credit]Na tradição africana, são os griots, não os livros, que transmitem a história de um povo ao longo dos tempos.

Alguns anos atrás. Então, a avó de Mandiaye decidiu se casar com uma árvore.

Em idade avançada, tinha acabado de ficar viúva, e a tradição islâmica, religião do esposo recém-falecido, determinava que contraísse matrimônio outra vez. Mas ela, animista, não queria outro homem. Após receber a permissão por um sonho que tivera, mandou plantar uma muda de baobá no quintal de casa. O baobá que seria seu futuro marido.

 

Um sábado de fevereiro de 2011. Sob uma tenda de madeira e palha, Mandiaye Ndiaye explica as bases do animismo, a religião de 1% dos senegaleses e presente em muitos países africanos e ao redor do mundo. É um sábado de sol e estamos na vila de Diol Kadd, uma das 32 da Comunidade Rural Ndièyenne Sirakh, na província de Khombolé, no interior do Senegal. A tenda de madeira e palha é o local onde os sábios animistas se reúnem. Logo ao lado, está a mesquita da vila, de tijolo, mas sem telhado. O islamismo e o animismo convivendo no mesmo espaço.

Nas últimas décadas, a animismo foi perdendo força no Senegal, embora tanto o islamismo (professado por cerca de 90% da população) quanto o cristianismo (algo em torno de 9%) incorporaram alguns de seus elementos.

Mandiaye conta que o animismo não é uma religião dogmática. Cada seguidor acredita em seu deus, professa sua fé a sua maneira. Os deuses podem ser qualquer coisa, concreta ou abstrata. Uma pessoa, um animal, uma árvore. Uma pedra. O sonho. O da família de Mandiaye era justamente o sonho. E quem os interpretava em Diol Kadd era a avó de Mandiaye.

 

Algumas horas mais cedo. É por volta das sete e meia da manhã que se inicia o dia na vila de Diol Kadd. Estamos no inverno do hemisfério norte, e o sol acaba de sair. Não há luz elétrica; os 500 habitantes locais dormem logo que anoitece e despertam assim que amanhece. Entre as ruas de areia da vila, começam a aparecer pouco a pouco as pessoas. Uma vendinha abre suas portas. Uma menina compra uma baguete para o café da manhã. Dois homens tocam cabras nos arredores. Um senhor observa a movimentação sentado em uma raiz de árvore. Uma mulher passa com seu filho pendurado nas costas.

A população de Diol Kadd vive basicamente da agricultura e do pastoreio, assim como mais de 60% dos senegaleses. Planta amendoim, sêmola, uma espécie de feijão e uma erva local. Cria vaca e cabra. Uma parte da produção é para consumo local, a outra é vendida. O Senegal é um grande exportador de amendoim. E o cuscuz, feito da sêmola, é um dos pratos nacionais. Com a erva, fazem chá.

Mas, segundo a organização Social Watch Senegal, o país é o que mais tem problemas de soberania alimentar da África Ocidental, situação que vem sendo agravada pelo aumento dos preços do petróleo – que faz crescer os custos de produção – e das superfícies de terra destinadas para a produção de agrocombustíveis, por exemplo. Hoje, ainda segundo a Social Watch Senegal, o país do oeste africano importa de 70 a 80% do arroz que consome, 100% do trigo e 50% dos demais cereais.

Desde os anos 1990, o Senegal vem sendo um dos melhores “alunos” de instituições como FMI e Banco Mundial. Assim, no período, o governo pôs em marcha uma série de privatizações, destacando-se a das empresas públicas de água, telecomunicações e energia.

Na área alimentar, o Executivo senegalês extinguiu a Sonagraines, a empresa responsável pela comercialização do amendoim, e estruturou uma rede de 400 comercializadores privados do produto, deixando seus cultivadores à mercê desse setor.

Durante o café da manhã. Mandiaye conta que a vila de Diol Kadd está dividida entre progressistas e tradicionalistas. Literalmente: uma rua separa as casas dos dois lados. Os desentendimentos se dão, principalmente, na forma de se cultivar os alimentos. Segundo Mandiaye, há alguns anos houve um grande debate na aldeia sobre o melhor momento para se fazer o semeio. Começava a época de chuvas na região e, por isso, os progressistas queriam começar a plantar imediatamente. Já os tradicionalistas defendiam que era preciso se observar o comportamento dos insetos. Eles “diriam” qual a hora mais adequada para semear.

Não houve acordo. Então, cada grupo seguiu seu rumo. Os progressistas plantaram por aqueles dias, enquanto os tradicionalistas esperaram por mais duas semanas. Mandiaye conta que, na hora da colheita, nenhum dos lados se deu bem. Chuvas torrenciais inundaram a plantação dos primeiros, enquanto uma forte seca arruinou o cultivo dos segundos. “Foi uma lição para mostrar que não se deve ser radical em suas posições e pensamentos. Deve-se encontrar sempre um meio termo”, sentencia.

 

Ano de 2002, na Itália. Contar uma história é mais do que uma ação ordinária para Mandiaye. É seu dom. Sua missão na Terra. Mandiaye é um griot, aquele que na tradição do oeste africano é o escolhido para transmitir oralmente a cultura e a história de seu povo. Ele explica que na cultura ocidental, é preciso ver para crer. “Se não está escrito, não é nada.” Já o animismo é a invisibilidade, o inexplicável. “Manter o invisível é manter viva a fé”, diz.

Segundo Mandiaye, antigamente, durante os impérios da África Ocidental, os griots, além de terem a missão de manterem a história da família, exerciam funções como a de conselheiros do rei ou mensageiros. Eram eles que sabiam como usar a palavra adequadamente.

Mas não é apenas por meio da fala que um griot faz seu trabalho. Ele pode escolher se passará a mensagem através do canto ou da dança, por exemplo. Mandiaye escolheu o teatro.

“O teatro é uma maneira de revelar muitos segredos”, diz. Em 2002, ele vivia já há muitos anos na Itália, onde exercia a profissão que elegera, quando recebeu a notícia da morte do seu pai. Foi um sinal do destino. Ele precisava manter a ligação com seus antepassados e estabelecer uma conexão entre seus dois países: Senegal e Itália. Decidiu voltar para Diol Kadd, onde iniciou um projeto de teatro popular com os habitantes locais. Uma das primeiras apresentações, realizada em wolof, a língua falada pela imensa maioria dos senegaleses, foi uma peça inspirada em uma história do dramaturgo grego Aristófanes. “O personagem principal da história questionava o tempo todo: ‘por que uns são cada vez mais ricos e outros cada vez mais pobres?’”.

Na hora do almoço. Mandiaye nos mostra um núcleo familiar típico de Diol Kadd. Estamos no lado tradicionalista da vila. Um corredor serve de entrada para um terreno central. Em volta desse “quintal”, estão as casas de todos as famílias que integram o tal núcleo. A do pai e suas esposas (o homem pode ter várias esposas) e de dois dos filhos com suas esposas e descendentes. Em um canto do terreno, uma tenda de palha serve de cozinha: um buraco no chão com uma espécie de grelha em cima. Ao lado, o banheiro.

Todos na vila são primos entre si. Descendem de um só homem, aquele que fundou a comunidade, há muitos anos. “Diol”, em wolof, quer dizer “planície”. Kadd é o nome de uma árvore muito comum na região. No período chuvoso, embora pareça praticamente morta, absorve a água. Na época de seca, enquanto as demais árvores perdem suas folhas, exibe seus galhos frondosos.

 

Trinta e cinco anos atrás. Por sua capacidade de florescer na época de seca, o kadd é o deus de algumas famílias da vila que seguem a religião animista. Se alguém está mal, seja fisicamente ou moralmente, pergunta-se à árvore sobre o que fazer. Mandiaye explica que há mais de três décadas a região onde está Diol Kadd era cheia de árvores e animais. Com o tempo, o clima desértico vindo da Mauritânia, ao norte, foi avançando sobre o centro senegalês. Hoje, o cenário natural da comunidade de èyenne Sirakh – incluindo Diol Kadd – é semelhante ao de uma típica savana africana. Altas árvores dispersas e pequenos arbustos e pastos em volta.

 

Na tarde do mesmo sábado de fevereiro. Mandiaye nos leva para uma conversa com o Conselho dos Anciãos da Comunidade Rural de Ndièyenne Sirakh. Antes, somos recebidos por Amadou Falilou Fall, presidente do Conselho Rural da comunidade, em sua casa. No lado de fora, suas três mulheres, filhos, cunhadas e sobrinhos descascam amendoim.

Amadou explica que desde 1972, quando da promulgação de uma lei nacional, o problema da terra não existe no Senegal. “A terra é de todos os senegaleses. O poder da terra é da comunidade”. Segundo ele, não existe latifúndio no país. Quando uma propriedade é improdutiva, o governo a desapropria e a distribui.

Mas nem tudo é uma maravilha. Na sede da Associação dos Pescadores, Camponeses e Pastores de Ndièyenne Sirakh, os membros do Conselho dos Anciãos elencam as principais dificuldades para a agricultura local: escassez de água e a falta de recursos financeiros para a compra de equipamentos agrícolas. “Há água potável para beber, mas não sobra para as plantações. Às vezes, usamos nossas próprias mãos para cavar canais de irrigação”, explica um deles.

Muitos anos atrás. Ser um griot também é ser um guardião dos segredos da vida. Sua obrigação é revelar alguns e manter os demais ocultos para sempre. A sabedoria reside em escolher quais estão no primeiro ou no segundo grupo.

Quando ainda estava viva, a avó de Mandiaye era a griot da família e uma espécie de sacerdotiza de Diol Kadd. Era ela quem traduzia os sonhos da população local. E eram eles que determinavam como a pessoa deveria se comportar naquele dia: que cor de roupa vestir, o que comer, o que fazer… qual seu animal, sua planta etc. Segundo Mandiaye, os habitantes da vila faziam de tudo para conseguir sonhar. Do contrário, se passavam muitos dias sem ter sucesso, uma grande desgraça poderia acontecer.

Anos mais tarde. Quando a avó de Mandiaye sentiu que estava para morrer, deu ordens de cortarem o baobá, seu marido. Determinou que um pedaço dele fosse enterrado junto a ela, enquanto a outra parte seria mantida com um guardião; todo novo descendente, ao atingir certa idade, deveria cortar um pedaço da madeira e levá-lo consigo por toda a vida, como um amuleto. Antes de sua morte, a avó de Mandiaye ainda nomeou qual seria o próximo griot da família, aquele que seguiria a tradição e seria o novo custodiador dos segredos: o escolhido foi o pai de Mandiaye. Quando este faleceu, quem assumiu o posto, dentre os 22 filhos de duas mães diferentes, foi justamente Mandiaye.

Ao entardecer daquele sábado. De repente, ao fim da reunião com o Conselho dos Anciãos, ouve-se um batuque ao longe. Alguns metros de caminhada pelas ruas de areia da vila de Ndièyenne Sirakh (espécie de capital da comunidade rural homônima) e a visão que surge entre as casas rústicas locais é surpreendente. Uma enorme família – homens, mulheres, jovens, idosos, crianças – entretida em tocar, dançar e cantar. O ritmo é o de uma típica percussão africana… e brasileira. Os visitantes vindos do lado esquerdo do Atlântico são convidados a entrar na roda de dança. A integração é total, e vem acompanhada de muitos gritos e gargalhadas de aprovação. O momento é catártico. Os membros da família que tocam, dançam e cantam com os brasileiros são os griots da vila de Ndièyenne Sirakh. São os guardiões e transmissores da história local. E escolheram cumprir tal missão através da música. Talvez a manifestação artística africana por excelência.

*Publicado originalmente no Brasil de Fato.