Catherine Samba-Panza, a nova presidente interina, tem um ano para pôr fim à sangrenta luta sectária na República Centro-Africana
Quando Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos, nas profundezas da crise econômica, o canal de notícias satírico Onion (a cebola) deu a manchete: “Homem negro recebe o pior emprego do país”. O juramento na semana passada de Catherine Samba-Panza como presidente interina da República Centro-Africana (RCA) poderia gerar uma sequência: “Mulher recebe o pior emprego do país”.
Enquanto Samba-Panza, vestida de vermelho, segurava a bandeira nacional e era saudada por uma fanfarra de trombetas no centro da capital, Bangui, os subúrbios da cidade se incendiavam em um dia que deixou pelo menos 16 mortos. A primeira mulher líder da RCA, e a terceira da África, herdou um legado infernal em que precisa tentar desviar o país da iminente guerra civil. A ênfase para seu sexo não é um recurso de mídia.
Muitos centro-africanos dizem que uma mulher e uma mãe está em melhor situação para trazer a reconciliação. “Tudo o que passamos foi culpa dos homens”, disse ao New York Times Marie-Louise Yakemba, uma ativista civil. “Acreditamos que com uma mulher existe pelo menos um raio de esperança.” Mas a “mãe coragem”, como ela foi apelidada, assume um Estado que quase não funciona desde sua independência da França, em 1960. Seus presidentes, incluindo Jean-Bédel Bokassa, que se intitulou imperador com uma coroação napoleônica para combinar, descobriram que sua lei muitas vezes não vai além da capital. Em março passado, o mais recente de muitos golpes colocou no poder uma coalizão rebelde muçulmana sobre a maioria cristã da população, e logo surgiu o conflito. Com milhares de mortos e atrocidades de ambos os lados, as autoridades da ONU advertiram que o ciclo de represálias corria alto risco de degenerar em genocídio.
Arrasado, Michel Djotodia, o primeiro presidente muçulmano do país, afastou-se depois de nove meses sombrios. Entra Samba-Panza, de 59 anos. Richard Dowden, diretor da Real Sociedade Africana no Reino Unido, disse: “Neste momento você poderia esperar um machão para criar uma ditadura e tomar o controle. Em vez disso, eles elegeram uma mulher, que poderá ser a resposta”. Por que a RCA, onde o nível de casamento precoce e forçado é maior que 60%, escolheu uma mulher para salvá-la? Uma resposta é que os países muitas vezes fazem isso nos momentos de necessidade. Minna Salami, uma comentarista feminista sobre a África, disse: “Podemos observar os mesmos velhos padrões. Histórica e globalmente, as mulheres são mais inclinadas a acessar instituições tradicionalmente reservadas aos homens durante crises.
Por exemplo, na Segunda Guerra Mundial, nas lutas de independência africanas, na Birmânia, na Ruanda depois da guerra, na Libéria. Nesse sentido, não surpreende que a RCA hoje tenha uma mulher presidente. O país enfrenta uma crise, e não é simplesmente o passado de Samba-Panza, mas também seu gênero, que é a chave”. Samba-Panza nasceu no Chade de pai camaronês e mãe centro-africana, o que faz dela o “melhor exemplo de integração regional”, como disse em seu discurso de dez minutos pedindo votos no conselho nacional transitório. Ela foi à universidade na França, onde dois de seus três filhos ainda vivem; seu marido, um ex-ministro, teria uma doença debilitante. Cristã, ela conquistou o respeito dos dois lados da divisão sectária. Em seu discurso de vitória na semana passada, a nova mãe da nação pediu a seus “filhos” que deponham as armas e declarou: “A partir de hoje, sou a presidente de todos os centro-africanos”. Citou sua “sensibilidade de mulher” como um ativo vital que poderá trazer reconciliação.
O site Mulheres Dentro e Além do Global citou-a como dizendo: “Muitas pessoas me aconselharam que não era um bom momento para uma mulher. Mas não foram só as mulheres que me apoiaram. Muitos jovens também. Todos sentimos que as pessoas queriam uma ruptura. Elas queriam o fim do homem político. Eu senti isso. No coração das pessoas senti esse desejo de eleger uma mulher que pudesse trazer paz e reconciliação”.
Aos olhos de muitas pessoas, incluindo os doadores estrangeiros, sua ascensão é a primeira coisa que dá certo na RCA em muitos anos. Falando de Bangui, Peter Bouckaert, diretor de emergências na Human Rights Watch, disse: “É um passo na direção certa para se afastar das pessoas que tomaram o poder por meio das armas para alguém com apoio popular. Ela é amplamente respeitada por sua integridade e muitos comemoraram quando ela foi eleita”. Seu gênero importa, ele acrescentou. “Eu acho que para muitas pessoas o fato de ela ser mulher traz esperanças, porque estão cansadas de homens armados a governá-las. Acreditam que ela oferece uma oportunidade realista de reconciliação.”
Mas Samba-Panza só será presidente durante um ano, pois eleições devem se realizar em fevereiro de 2015 e a líder interina não pode se candidatar. Até então, a escala do desafio é imensa, enquanto a maioria cristã hoje parece em ascendência e tropas africanas e francesas lutam para manter a paz. Bouckaert acrescentou: “Em pouco tempo talvez não haja muçulmanos na RCA.
Praticamente todos os muçulmanos com quem falamos querem deixar o país”. Depois de décadas de negligência em um país de tamanho comparável ao da França, é difícil saber o que deveria estar no topo da agenda da nova presidente. David Smith, diretor da Okapi Consulting que passou vários anos na RCA, disse: “Vemos muitas reportagens na mídia sobre reconstruir instituições, mas na verdade é ‘construir instituições’, porque elas nunca existiram. A presidente não tem um exército ou polícia treinados. Está começando do nada.
Por quanto tempo a comunidade internacional se interessará pela RCA? Se a história servir de exemplo, não muito”. Caesar Poblicks, da consultoria Conciliation Resources, em Londres, disse: “As expectativas sobre ela são tão altas que a comunidade internacional precisa dizer: ‘Não podemos deixá-la falhar’. Existe respeito por sua resistência porque ela decidiu ficar em Bangui, mas sem ajuda humanitária, lei e ordem ele desaparecerá muito rapidamente”.
CAMINHO PARA O PODER
1954 – nasce em 26 de junho no Chade. O pai de Samba-Panza é de Camarões e sua mãe da República Centro-Africana.
1972 – muda-se para a RCA aos 18 anos e trabalha em seguros como advogada empresarial. Participa ativamente de uma organização de direitos das mulheres, fazendo campanha contra a mutilação genital feminina.
2013 – entra formalmente na política e preside um processo de reconciliação destinado a unir os diferentes grupos do país. Diz que a violência entre grupos cristãos e muçulmanos tinha origem na pobreza. 2012 – torna-se prefeita de Bangui. 2014 – faz o juramento como presidente interina da RCA em 23 de janeiro. É a primeira mulher a ocupar o cargo.
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* Publicado originalmente no The Observer e retirado do site Carta Capital.