por Sibélia Zanon, Mongabay –
- As abelhas nativas brasileiras são importantes em diversos serviços ambientais – a polinização da flora e de cultivos agrícolas é o maior deles.
- A criação de espécies sem ferrão ajuda a manter a floresta em pé. Meliponicultores tendem a preservar o ambiente e restaurar áreas para subsidiar a atividade.
- Por outro lado, a produção de alimentos baseada na monocultura e no uso de pesticidas ameaça populações de abelhas nativas.
- A espécie exótica Apis mellifera domina a apicultura no país e as pesquisas sobre os efeitos nocivos de agrotóxicos. Mas novos estudos mostram que pesticidas afetam abelhas sem ferrão com maior intensidade.
Quando se fala em abelhas, nem sempre se considera a enorme diversidade desses insetos – no imaginário de muitas pessoas, é como se houvesse uma única espécie. De fato, quase todo o mel que consumimos, por exemplo, vem das abelhas africanizadas (Apis mellifera), que resultam do cruzamento de raças europeias e africanas. Existem, porém, cerca de 20 mil espécies diferentes no mundo. Só o Brasil possui mais de 300 espécies de abelhas — a grande maioria, ao contrário das africanizadas, com o ferrão atrofiado. É a maior diversidade no mundo desse tipo de abelha.
Aos poucos, as abelhas sem ferrão do Brasil vêm tendo sua importância reconhecida. Cultivos agrícolas com alto valor econômico dependem desses insetos. E a criação ajuda na conservação: os meliponicultores (criadores de abelhas sem ferrão) costumam preservar ecossistemas locais e restaurar áreas para subsidiar a atividade, já que as abelhas nativas brasileiras dependem de um habitat saudável para se reproduzir.
“Há uma tendência de valorização. Lugares que mantiveram a cultura de criação de abelhas nativas podem agora fazer disso um empreendimento para geração alternativa de renda”, conta Jerônimo Villas-Bôas, autor do livro Manual Tecnológico: Mel de Abelhas sem Ferrão, que aborda as práticas associadas à meliponicultura no país.
Na gastronomia, o mel das abelhas brasileiras já chegou às cozinhas de chefs renomados – Alex Atala é um deles.
Os produtos das abelhas brasileiras – mel, própolis, pólen, cera e geleia real – são conhecidos há séculos. Relatos escritos em 1577 por Hans Staden, que viveu entre os Tupinambá no litoral paulista, mencionam três abelhas nativas usadas pelos indígenas para uso medicinal e na alimentação. As espécies seriam provavelmente a mandaçaia (Melipona quadrifasciata), a mandaguari (Scaptotrigona postica) e a jataí-amarela (Tetragonisca angustula)..
“Para a minha tese de doutorado, testei o mel de três espécies de abelha sem ferrão: a jataí, a canudo (Scaptotrigona depilis) e a borá (Tetragona elongata)”, diz Raoni da Silva Duarte, Mestre e Doutor em Entomologia pela Universidade de São Paulo (USP). “Em testes in vitro, os méis tiveram ação antimicrobiana contra vários patógenos causadores de doenças em humanos.”
A criação de abelhas nativas, hoje em expansão no Brasil, pode visar desde pesquisas científicas até a produção de mel em base comunitária, gerando diversos benefícios. “Os meliponicultores buscam áreas de vegetação conservada”, diz Jerônimo Villas-Bôas. “A criação permite a conservação das espécies envolvidas e, indiretamente, de outros animais do ecossistema, como aves e mamíferos.”
Polinização: trabalho que vale bilhões
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês), mais de 75% dos cultivos destinados à alimentação humana dependem da polinização.
A maioria das espécies vegetais, cultivadas ou nativas, é polinizada por animais como morcegos, mariposas, borboletas, vespas, besouros e, principalmente, abelhas. A Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) estima em R$ 43 bilhões por ano o valor do serviço ambiental da polinização para a produção de alimentos no país, numa lista de 44 plantas cultivadas ou silvestres.
A polinização feita pelas abelhas sem ferrão brasileiras é a única que alcança certas espécies da flora. “Elas são principais responsáveis por polinizar a vegetação nativa, proporcionando a fecundação cruzada, o que garante a variabilidade das espécies vegetais”, diz Generosa Sousa Ribeiro, do Setor de Meliponicultura da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). “Diversas plantas necessitam de espécies nativas. A acerola, por exemplo, depende das abelhas solitárias do gênero Centris.”
Há evidências de que a inserção de colônias de abelhas sem ferrão em áreas agrícolas tem efeito positivo na produção de café, canola, goiaba, maçã, maracujá, pepino e dendê, entre outros cultivos. No morango, a polinização da iraí (Nannotrigona testaceicornis) diminui o grau de deformação das frutas. E um estudo revelou alta frequência da uruçu-nordestina (Melipona scutellaris) na polinização de laranjas.
“Quanto mais conhecemos as abelhas sem ferrão brasileiras, mais importância elas ganham”, diz Juliana Feres, pesquisadora e sócia-fundadora da Heborá, plataforma que foca na qualificação de mulheres do campo por meio da produção de méis brasileiros.
As abelhas sem ferrão prestam ainda um serviço especializado de polinização por vibração, conhecido por buzz pollination. Pousadas sobre a flor, muitas espécies, sociais ou solitárias, têm a capacidade de vibrar por meio da contração da musculatura torácica, liberando assim o pólen das flores e beneficiando cultivos como tomate, berinjela e jiló.
Apesar disso, as espécies nativas são ainda pouco utilizadas. A abelha africanizada continua sendo a preferida não só para a produção de mel como também para suplementar a polinização em cultivos agrícolas, por ter manejo bastante conhecido e população abundante. O Relatório Temático sobre Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil mostra que a generalização é perigosa: vários cultivos necessitam de polinizadores específicos.
Ameaças no ar
Mas as abelhas nativas sem ferrão enfrentam um paradoxo: importantes para o cultivo agrícola, elas estão ameaçadas pela própria agricultura. “O principal motivo de as abelhas estarem desaparecendo é o nosso sistema de produção de alimentos”, alerta Jerônimo Villas-Bôas. “A supressão vegetal afeta o seu habitat natural. Além disso, a homogeneização da paisagem não propicia a dieta diversificada que os insetos precisam. E para piorar, temos o uso abusivo de agrotóxicos.”
Os agrotóxicos, quando não matam, podem diminuir a longevidade das abelhas, comprometer a capacidade de voltar à colmeia, interromper a postura de ovos pela rainha, impossibilitar a comunicação, comprometer a organização e divisão dos trabalhos e paralisar asas e pernas, entre outros danos que acabam por enfraquecer ou mesmo dizimar a colmeia.
“As populações [de espécies sem ferrão] são bem menores que as de A. mellifera, o que dificulta a reorganização dessas abelhas após pulverizações sucessivas. Em 2017, fizemos coletas em regiões onde ocorreram pulverizações em massa e conseguimos localizar mais de dez agrotóxicos letais para as abelhas nativas”, afirma Generosa Sousa Ribeiro, da Uesb.
As abelhas africanizadas são prioridade nos testes de agroquímicos no Brasil, baseados em protocolos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas alguns estudos já atestam que as abelhas sem ferrão são mais sensíveis aos agrotóxicos do que essa espécie padrão. “Ainda são poucos os resultados diante dos danos gravíssimos que os venenos vêm causando aos polinizadores nas últimas décadas”, avalia Generosa.
Uma publicação de 2018 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Seleção de Espécies de Abelhas Nativas para Avaliação de Risco de Agrotóxicos, defendeu a realização de estudos mais específicos, que não se limitem a uma única espécie.
Outros trabalhos vieram na sequência. Um estudo de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), publicado em 2019, avaliou o efeito do dimetoato, usado como referência internacional em testes de toxicidade, e mostrou que a dosagem da substância capaz de matar 50% de uma população de larvas de uruçu-nordestina é 320 vezes menor do que a mesma dosagem capaz de matar igual percentual de larvas de A. mellifera.
No mesmo ano, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), outro trabalho mostrou que o tiametoxam, bastante usado na agricultura, e outros três inseticidas do grupo dos neonicotinoides podem causar mudanças de comportamento em abelhas adultas jataí, como redução da velocidade de voo e diminuição da distância percorrida.
Um indicador da gravidade do uso de agrotóxicos na agricultura, com efeitos comprometedores para a saúde humana e para a polinização, é fato de o inseticida imidacloprido ter sido o mais encontrado nos testes realizados em amostras de alimentos na última edição do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicado em dezembro de 2019.
Um artigo de 2016, que teve como base a timba-amarela (Scaptotrigona postica Latreille), mostrou que o ingrediente ativo imidacloprido interferiu no comportamento dessa abelha, afetando a sua capacidade de reconhecer alimento e inviabilizando a sua locomoção em campo.
A perda de polinizadores em um ecossistema pode ser irreversível – e nada se sabe sobre a possibilidade de recolonização natural. “As abelhas do Brasil coevoluíram durante muito tempo com a flora nativa”, explica Raoni da Silva Duarte, da USP. “Cada planta se adaptou aos benefícios que determinada espécies trouxeram para a sua reprodução. Ao mesmo tempo, as abelhas se adaptaram a recursos específicos, em forma de néctar, pólen, óleos e resinas. Ou seja, há uma relação de dependência grande entre a flora brasileira e as abelhas nativas.”
Imagem de destaque: jataí-amarela (Tetragonisca angustula). Foto: Letícia Smania / CC-BY.