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De celeiro a grande canteiro de obras para o mundo

Belém do Pará, vista desde o rio Guamá, é o epicentro de vários megaprojetos amazônicos. Foto: Diana Cariboni/IPS
Belém do Pará, vista desde o rio Guamá, é o epicentro de vários megaprojetos amazônicos. Foto: Diana Cariboni/IPS

 

Belém, Brasil, 5/11/2013 – De celeiro do mundo, no século passado, a grande canteiro de megaprojetos internacionais de infraestrutura, energia e mineração, a América do Sul enfrenta um novo dilema: impulsionar sua economia com a promessa de reduzir a desigualdade, ao preço de custos sociais e ambientais que já apresentam a conta. O velho modelo desenvolvimentista se repete. A América do Sul cresceu e com isso suas demandas por energia, pontes, estradas, insumos de mineração. E também as de outros países emergentes do Sul, que hoje veem nessa região a nova fronteira de matérias-primas estratégicas.

A América Latina “tem dificuldades em digerir seu próprio desenvolvimento, quais são as armadilhas, quais as alternativas?”, perguntou em entrevista à IPS a secretária adjunta de Indústria, Comércio e Mineração do Pará, Maria Amélia Enriquez. O Pará, no extremo nordeste do Brasil, faz parte da Amazônia, que é compartilhada por Brasil, Colômbia, Bolívia, Equador, Peru, Guiana, Venezuela e Suriname, onde estão planejadas 320 grandes obras para os próximos 20 anos, segundo João Meirelles, diretor do não governamental Instituto Peabiru, que propõe valorizar a diversidade cultural e ambiental da região.

As hidrelétricas representam mais de um terço. Na bacia do rio Tapajós, caudaloso afluente do Amazonas que atravessa os Estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso, estão previstas cerca de 42, cinco delas de grande magnitude. “Estamos falando de investimento anual de pelo menos R$ 50 bilhões, dominado por menos de dez empresas, entre outras as brasileiras Camargo Corrêa e Odebrecht”, detalhou Meirelles. A explosão de megaprojetos se repete na região: portos, estradas e hidrovias, negócios de mineração, agroindústria e metalurgia.

“O velho não morreu e o novo não nasceu”, observou Alfredo Wagner, coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, ao se referir a um modelo econômico inspirado “nos anos 1930” e hoje voltado ao “mercado internacional de commodities”. Esses temas estiveram em discussão entre 26 e 28 de outubro em Belém, capital paraense, durante o Encontro de Jornalistas Sobre Megaprojetos, organizado pela agência IPS e pela Mott Foundation, dos Estados Unidos.

Homens descascando mandioca no mercado Ver-o-Peso de Belém. Foto: Diana Cariboni/IPS
Homens descascando mandioca no mercado Ver-o-Peso de Belém. Foto: Diana Cariboni/IPS

 

Com financiamento público e privado, especialmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o processo é protagonizado também pelas novas grandes multinacionais da região, como a brasileira Odebrecht. Na Venezuela, essa empresa está encarregada de três grandes projetos de infraestrutura. A represa de Tocoma é a última das quatro grandes centrais planejadas para aproveitar as águas do rio Caroní, o segundo mais importante, no sul.

A ponte suspensa Nigale, prevista para 2018 sobre o lago Maracaibo, será a terceira mais longa da América Latina e inclui construção de estradas e ferrovias de 10,8 quilômetros e três ilhas artificiais. A ponte Mercosul (terceira sobre o rio Orenoco) é planejada para 2015, a fim de unir o sul e o centro da Venezuela, e seria a segunda maior ponte da América Latina. No total, segundo o governo venezuelano, estão em construção 30 grandes obras do Plano da Pátria 2013-2019, com investimentos totais de US$ 80 bilhões.

Estamos diante de uma “evolução de capitalismo tardia?”, questionou Wagner. Na Amazônia brasileira, o megaprojeto mais emblemático e polêmico também fica no Pará: a central hidrelétrica de Belo Monte, que inundará 516 quilômetros quadrados de selva e forçará o deslocamento de mais de 16 mil pessoas. A hidrelétrica, no rio Xingu, terá capacidade de geração de 11.233 megawatts e é considerada essencial pelo governo para o fornecimento elétrico.

Grande parte dessa energia seria consumida pelas indústrias instaladas na região. Várias delas têm, inclusive, interesse em investir em mais desenvolvimentos hidrelétricos, segundo Meirelles, como a corporação norte-americana do alumínio Alcoa e o grupo brasileiro Votorantim, da área de cimento, mineração, metalurgia, siderurgia e celulose para papel. A pergunta é “quem fica com a riqueza natural extraída da Amazônia” e a quem esses projetos beneficiam, segundo Gilberto Souza, professor de economia da Universidade Federal do Pará (UFPA).

A ampliação do porto de Vila do Conde, no município paraense de Barcarena, servirá para melhorar a entrada e saída de alumínio e suas matérias-primas, e a exportação de grãos que chegam do centro do Brasil. Contudo, deslocará alguns bairros ribeirinhos. Com as novas hidrelétricas, o Pará produzirá metade da energia consumida no país. Esse Estado, rico em minerais mas com os piores índices de desenvolvimento do país, destina grande parte de sua produção para países como China, principal consumidor de ferro, destacou Souza.

Altamira, a cidade mais próxima das obras de Belo Monte, teve crescimento populacional de 50% em dois anos, e, como consequência, agravou-se o déficit de saúde, educação e moradia, e dispararam a violência e a prostituição. Além do desmatamento, na região já se nota a deterioração da qualidade da água e a redução de peixes, que são a base da alimentação de suas comunidades.

Ironicamente, a região que fornecerá eletricidade para meio Brasil sofre frequentes cortes de luz, disse à IPS o jovem professor Fabiano de Oliveira, do Movimento dos Afetados pelas Represas de Altamira. Ele e outros membros de comunidades afetadas por megaprojetos se queixam de não serem devidamente consultados. Os movimentos de resistência crescem, mas enfrentam uma de suas “maiores contradições: muitos dos desalojados são, ao mesmo tempo, empregados” de Belo Monte, explicou Oliveira.

No Chile, duas grandes obras geraram resistências semelhantes. O projeto HidroAysén, na Patagônia chilena, é formado por cinco grandes hidrelétricas que implicam danificar a área de maior biodiversidade desse país. A extensa linha de transmissão exigida para atender a demanda da mineração no norte, de dois mil quilômetros, atravessará oito regiões, mas em nenhuma entregará eletricidade. Essa obra está suspensa devido a demandas judiciais.

Mais ao norte, a mina binacional de ouro e prata Pascua Lama, da canadense Barrick Gold, fica na Cordilheira dos Andes, entre Chile e Argentina. Reiteradas denúncias sobre contaminação de água e destruição de duas geleiras levaram, em abril, à decisão judicial de suspender temporariamente sua construção. A empresa acaba de anunciar que, por problemas econômicos vinculados à cotação do outro, decidiu suspender a obra.

Na região amazônica boliviana do rio Beni, os povos indígenas aguardam informação sobre os impactos da construção do projeto hidrelétrico de Cachuela Esperanza, com capacidade de 990 megawatts e custo de US$ 2 bilhões, para exportar energia para o Brasil. Ambientalistas alertam que provocará um desequilíbrio na natureza pela inundação de aproximadamente mil quilômetros quadrados de terras habitadas.

De volta ao Pará, o gerente de Meio Ambiente, Segurança e Saúde da corporação do alumínio Albras, José Etrusco, considera que grandes hidrelétricas, como Belo Monte, representam a melhor relação custo-benefício, embora deixem desalojadas comunidades nativas. “Temos que fazer isso ou ficaremos às escuras”, afirmou.

Na Colômbia, a construção de um complexo de túneis no Alto de La Línea, em plena Cordilheira Central, gera outro tipo de problema. Os túneis são fundamentais para habilitar a ligação rodoviária leste-oeste, desde a Venezuela, passando por Bogotá e terminando em Boaventura, único porto colombiano no Oceano Pacífico. Trata-se da coluna vertebral do comércio internacional colombiano e uma via crucial para a saída da Venezuela para o Pacífico.

Porém, enquanto é concluído o primeiro trecho, ambientalistas afirmam que o Serviço Geológico Nacional vem alertando, desde 1999, sobre o perigo de erupção do vulcão Machín, que fica próximo da obra, um dado que nem mesmo consta do estudo de impacto ambiental.

Para o engenheiro florestal Paulo Barreto, do instituto brasileiro Imazon, o que está em questão é “o custo verdadeiro” destas obras: os ambientais, como o agravamento da mudança climática, os socioeconômicos, como a concentração da propriedade agrária, e os problemas sociais nas novas áreas urbanizadas. “Quem vai pagar a conta?”, questiona Barreto.

O professor de direito agrário da UFPA, José Benatti, pergunta por outro custo: quem absorverá a mão de obra migrante que ficar desempregada quando forem concluídos os megaprojetos? Pedro Bara, da organização conservacionista WWF Brasil, propôs uma metodologia para analisar no longo prazo os impactos das grandes obras “em seu conjunto” e “projeto a projeto”.

Como base para essa análise, a Iniciativa Amazônia Viva do WWF fez um exaustivo estudo dos diferentes ecossistemas amazônicos que são necessários conservar para que o bioma não desapareça. Essa visão de conjunto, pontuou Bara, deveria incluir um planejamento regional, especialmente em áreas sensíveis e compartilhadas como a Amazônia. Envolverde/IPS

* Com colaborações de Estrella Gutiérrez (Venezuela), Constanza Vieira (Colômbia), Marianela Jarroud (Chile), Franz Chávez (Bolívia).