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Camponeses de Las Pavas conseguem um milagre de Deus

Carmen Moreno na cozinha da comunidade de Las Pavas. Foto: Gerald Bermúdez/IPS
Carmen Moreno na cozinha da comunidade de Las Pavas. Foto: Gerald Bermúdez/IPS

 

Las Pavas/Bogotá, Colômbia, 18/11/2013 – A comunidade camponesa de Las Pavas recebeu, no dia 13, o Prêmio Nacional de Paz 2013, em reconhecimento à sua luta pacífica por uma propriedade que disputa com uma empresa de palma de óleo e que se converteu em emblema do conflito agrário na Colômbia. Um dia antes, os membros da comunidade, organizados na Associação Camponesa de Buenos Aires (Asocab), foram reconhecidos como vítimas de deslocamento forçado em um ato na sede da estatal Unidade para Atenção e Reparo Integral às Vítimas, em Bogotá.

A inclusão no Registro Único de Vítimas fortalece a Asocab em sua luta legal contra a empresa com a qual disputa essas terras, a Aportes San Isidro S.A. Nesse registro figuravam, em 1º de outubro, 5.087.092 deslocados forçados, do total de 5.845.002 vítimas de crimes cometidos desde 1985 na guerra civil colombiana, de quase meio século.

Vizinha à fazenda Las Pavas, de 1.338 hectares, Buenos Aires é uma vila do município El Peñon, no departamento de Bolívar, 270 quilômetros a sudeste de sua capital, Cartagena de Índias. Com uma única rua, fica na ilha fluvial Papayal, entre o braço do mesmo nome e o rio Magdalena, que percorre a Colômbia de sul a norte. Nesse lugar, as pessoas vivem em vilas como Buenos Aires e trabalha na pesca, agricultura e pastoreio.

Por intermédio da Unidade de Vítimas, o Estado retifica sua atitude anterior e reconhece que os camponeses foram deslocados ao menos duas vezes de Las Pavas, cuja terra trabalharam. Admite-se que “havia uma má compreensão jurídica”, pois “não se entendia que essa comunidade tivesse sido deslocada de sua exploração econômica, e não de sua residência” em Buenos Aires, disse Juan Felipe García, da Clínica Jurídica sobre Direito e Território da Pontifícia Universidade Javeriana, que assessora a Asocab. “Hoje vamos comemorar porque a verdade triunfou”, afirmou à IPS.

A decisão beneficia 464 pessoas das 124 famílias da Asocab. Contudo, não implica o reconhecimento da propriedade da terra, outro processo que está no Conselho de Estado e que pode demorar dez anos, indicou à IPS o diretor da Clínica Jurídica, Roberto Vidal. Agora “é trabalhar com a comunidade para definir quais medidas querem priorizar, fazer todos os acordos e as coordenações institucionais necessários e levar adiante o plano de reparação que desejam”, disse à IPS a diretora da Unidade de Vítimas, Paula Gaviria.

“Resta esperar que as autoridades cumpram, para concretização de nosso sonho, que é permanecer em Las Pavas”, ressaltou o líder da Asocab, Misael Payares. A fazenda foi centro do pulso da terra no médio Magdalena, região que foi muito apreciada pelos chefes do narcotráfico, por sua beleza e localização geográfica, importante na logística do tráfico aéreo de cocaína. Em uma fazenda similar, Rancho Lindo, aterrissavam e decolavam aviões até 1983. “Embarcavam lenha, mandioca, inhame, o quê?”, perguntou Payares.

Desde esse ano, como dono de Las Pavas figurou Jesús Emilio Escobar Fernández, primo e testa-de-ferro do famoso chefe do tráfico Pablo Escobar (1949-1993). Até 1963 foram terras do governo. A fazenda ficou abandonada desde 1992, diante da perseguição ao Cartel de Medellín de Escobar. Uma enorme árvore que cresce em uma piscina testemunha o abandono.

As moradoras de Buenos Aires, muitas analfabetas e com grande número de filhos, decidiram, então, plantar em parte de Las Cavas e formaram a Associação de Mulheres Camponesas de Buenos Aires. Depois souberam que, segundo o Artigo 52 de uma lei de 1994, a propriedade privada de uma área rural se extingue se foi usada para o narcotráfico, ou se permanecer abandonada por três anos consecutivos. Assim, ocuparam Las Pavas, e nasceu a Asocab, em 1997, para plantar cacau, banana e carvalho.

As guerrilhas de esquerda (surgidas em 1964) costumavam passar ao largo de Buenos Aires, rumo a um morro próximo com plantações de coca, atraentes para muitos colhedores temporários. Às vezes cobravam tributos dos camponeses de Las Pavas: uma galinha, um porco. Certa vez fuzilaram um homem acusado de ser informante do exército. Quando os paramilitares de ultradireita (formados em 1981) entraram até 1998 pelo Papayal e ali se instalaram, 20 minutos a pé de Buenos Aires, a guerrilha se foi.

Os paramilitares “começaram a matar gente”, disse à IPS uma das fundadoras da associação feminina, Carmen Moreno, que tem um irmão desaparecido. Diante de Buenos Aires desciam pelo rio corpos sem cabeça ou sem pernas. “Até as crianças viam. E gritavam: mamãe, ali vai uma perna… é de mulher, porque as unhas estão pintadas”, contou.

Todos esses anos a fome empurrava uma e outra vez as pessoas a superarem o pânico e o confinamento em Buenos Aires para voltar a plantar em Las Pavas. Em 2006, entraram com pedido de instauração de um processo de extinção de domínio. Inclusive, pediram e obtiveram créditos agrários estatais.

Entretanto, em 2007, o testa-de-ferro Escobar Fernández havia vendido Las Pavas às empresas Aportes San Isidro e CI Tequendama, esta última do grupo Daabon. Essas companhias dizem que nenhuma autoridade as informou que o domínio privado da fazenda era questionado, o que impedia qualquer compra e venda, e montaram um projeto de produção de palma, secando mangues, desviando e bloqueando caminhos.

O presidente Andrés Pastrana (1998-2002) fixou como principal estratégia agroindustrial a plantação de palma africana, e seu sucessor, Álvaro Uribe (2002-2010) continuou essa política. O governo decidiu que em Papayal fossem plantados 66 mil hectares de palma, e construída uma refinaria de óleo para produzir agrocombustível

A palma é o terceiro cultivo da Colômbia, com mais de 400 mil hectares plantados e mais de 130 mil trabalhadores, segundo a organização internacional Solidariedade, que promove uma produção equilibrada e sustentável de alimentos, combustível alternativo aos fósseis e outros produtos básicos. A palma tem grande potencial produtivo em relação a outras oleaginosas. Por isso, seu uso aumenta nas indústrias de alimentos, higiene e cosméticos e, também, no emergente setor do biodiesel.

No entanto, em Las Pavas ainda não se produz óleo e a batalha legal continua. Em 2009, as empresas promoveram o despejo policial dos camponeses. O episódio custou à Daabon seu contrato como fornecedora da rede de cosméticos The Body Sph, do Grupo L’Oreal. A Daabon preferiu se retirar do projeto antes de negociar com a Asocab, como pedia The Body Shop.

Os camponeses retornaram a Las Pavas em 2011, e desde então vivem ali, alguns por períodos, em um povoado de duas ruas e casebres de plástico negro. Na casa da fazenda há homens armados da Aportes San Isidro, sem autorização oficial. São frequentes as denúncias de intimidação, destruição de cultivos, disparos contra o trator da Asocab, roubo de animais, incêndio de árvores e sementes, e ataques com artefatos incendiários sobre as casas de plástico.

“O controle já não é de um grupo à margem da lei, mas de algumas empresas”, disse Payares. “Ainda não tivemos a primeira vítima humana, por nossa sabedoria em evitá-las”, afirmou Efraín Alvear, historiador da comunidade. Isso é “Conquista sem fuzil”, disse à IPS em referência a um livro sobre a história da Asocab, que escreve à mão há vários anos. Após sua inclusão no Registro Único de Vítimas e do Prêmio Nacional de Paz, os camponeses querem mudar o nome de Las Pavas. “Esse nome nos marcou muito”, segundo Payares. Daqui em diante se chamará Milagre de Deus. Envolverde/IPS