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A despedida dos camicases

Um avião camicase em exibição no Museu da Paz dos Pilotos Camicases em Chiran, no Japão. Foto: Suvendrini Kakuchi/IPS
Um avião camicase em exibição no Museu da Paz dos Pilotos Camicases em Chiran, no Japão. Foto: Suvendrini Kakuchi/IPS

 

Chiran, Japão, 28/1/2014 – Durante a Segunda Guerra Mundial os pilotos camicases se lançavam em queda livre sobre embarcações inimigas com seus aviões carregados de explosivos. Agora, um museu na localidade japonesa de Chiran pretende registrar as últimas cartas daqueles legendários atacantes suicidas como documentos pertencentes à Memória do Mundo da Unesco. O museu considera que estes registros são “simbólicos” com relação ao compromisso do Japão com a paz.

A medida de buscar reconhecimento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) acontece em meio a contínuas tensões políticas entre Japão e suas ex-colônias da Ásia oriental, China e península coreana, em torno de seu passado bélico. Os pilotos suicidas foram uma força especial destinada a proteger seu país dos aliados ocidentais na fase final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Segundo dados oficiais, 1.036 camicases morreram.
Narradores contratados pelo Museu da Paz dos Pilotos Camicases os descrevem como jovens valentes que se sacrificaram para proteger o Japão das potências invasoras coloniais do Ocidente.

“As últimas cartas escritas pelos camicases antes de decolarem mostram que não odiavam o inimigo e que só queriam servir ao seu país e proteger suas famílias”, explicou Satoshi Yamaki, o curador da mostra. “Registrar suas mensagens como documento mundial é reconhecer sua valentia e o compromisso do Japão de nunca voltar a entrar em uma guerra. Suas cartas simbolizam o compromisso do Japão com a paz”, acrescentou.

Yamaki dirige o Museu da Paz dos Pilotos Camicases, inaugurado em 1988, localizado entre as silenciosas colinas verdes de Chiran, na prefeitura de Kagoshima, na ilha de Kyushu. Em Chiran funcionou uma pista de onde os camicases decolaram em 1944 para se chocarem com os navios dos Estados Unidos que se aproximavam de Okinawa. Esta ilha foi o local onde o Japão travou a única batalha em terra antes da rendição japonesa, em 15 de agosto de 1945.

“Adeus. Te desejo apenas felicidade”, escreveu o capitão Toshio Anazawa, de 23 anos, à sua namorada. “Esqueça o passado. Viva o presente”, disse em sua carta o tenente Aihana Shoi Heart.

Financiado pelo governo local de Kyushu Sul, o Museu recebe mais de 700 mil visitantes por ano. A iniciativa de recuperar as histórias dos camicases, quase 70 anos depois de o Japão se render e se comprometer a ser uma nação de paz, simboliza os sentimentos e a permanente luta dos japoneses para assumir o fraturado passado bélico de sua nação, afirmam analistas.

“A história dos camicases é trágica e valente, e há um anseio nacional de obter o reconhecimento mundial. Mas o duelo japonês se tornou cada vez mais sinistro em um contexto de exploração política do passado bélico” do país, afirmou Yoshio Hotta, especialista em relações entre Japão e Estados Unidos.
A visita feita em dezembro pelo primeiro-ministro Shinzo Abe, que reivindica um renovado nacionalismo, ao controvertido santuário de Yasukuni, onde se homenageia criminosos de guerra entre outros mortos, expõe de maneira viva como o país continua patinando em seu difícil passado.

Abe declarou que foi “simplesmente apresentar seus respeitos aos mortos de guerra do Japão” e também para se comprometer a não travar uma noutra guerra, mas a visita provocou a condenação por parte dos líderes da China e da Coreia do Sul, que acusam o Japão de não se arrepender das agressões cometidas na Ásia no passado.

Na década de 1930, o Japão ocupou o norte da China e se responsabiliza, entre outros excessos, pelo massacre de Nanking, uma localidade que, assegura-se, o exército japonês saqueou depois de matar pelo menos 250 mil de seus moradores, em 1937. A península coreana foi invadia de 1910 a 1945. O Japão impôs uma liderança brutal, que incluiu a proibição do idioma e da cultura locais. Durante a Segunda Guerra Mundial, dezenas de milhares de coreanos foram enviados para servir no exército japonês ou forçados a trabalhar para empresas japonesas.

O sistema das “mulheres de consolo”, principalmente jovens coreanas e também da Manchuria chinesa e de outras partes da Ásia, usadas como escravas sexuais pelos soldados japoneses, continua sendo motivo de controvérsia bilateral. A decisão de Abe de visitar Yasukuni aumentou a tensão entre Japão e China, que já se enfrentam por disputas territoriais. Os dois países reclamam a soberania sobre as ilhas Senkaku (segundo os japoneses) ou Daiyou (segundo os chineses), no oriente do Mar da China.

Com reflexo atual de uma amargura histórica que persiste, no mês passado a Coreia do Sul cancelou uma reunião programada entre a sua presidente, Park Geun-hye, e Abe para discutir o assunto das mulheres de consolo. Os Estados Unidos também tomaram a medida sem precedentes de criticar a visita.
Porém, os japoneses mais velhos recordam os camicases com reverência. Sho Horiyama, de 91 anos, é um ex-camicase que visita o Museu, em Chiran, todo mês de maio para homenagear seus colegas de outrora, e se sente frustrado pelo prolongado e indefinido enfrentamento com os vizinhos do Japão em torno da história da guerra.

“Quando ouvi que o imperador Hiroito declarou a rendição do Japão em 15 de agosto (de 1945), chorei por não ter morrido por meu país”, contou Horiyama à IPS. “Por que o Japão não pode estar orgulhoso dos camicases por seu incrível sacrifício?”, questionou. Em 1945, ele tinha 22 anos e estava pronto para sua missão, que acabou abortada quando seu país foi derrotado.

Durante a guerra morreram mais de um milhão de japoneses, incluídos 250 mil soldados, segundo estatísticas divulgadas pelo Ministério de Saúde e Bem-Estar.
Takeshi Kawatoko, de 86 anos, narrador no Museu, perguntou: “Por acaso podemos não respeitar sua valentia e seu compromisso com seu país?”. Os camicases representam uma qualidade típica dos samurais japoneses, o de colocar a lealdade acima das necessidades pessoais, a qual está profundamente arraigada no imaginário coletivo nacional, disse à IPS. “É isto o que desejo que o mundo entenda. Me entristece não poder explicar o passado às gerações mais jovens, que cresceu praticamente desconhecendo as valentes ações de seus ancestrais”, acrescentou. Envolverde/IPS