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Incêndio em Valparaíso deixa cinzas de miséria e abandono

Paisagem por trás do fogo no monte La Cruz, um dos mais afetados pelo incêndio que começou no dia 12 na cidade chilena de Valparaíso. Foto: Pablo Unzueta/IPS
Paisagem por trás do fogo no monte La Cruz, um dos mais afetados pelo incêndio que começou no dia 12 na cidade chilena de Valparaíso. Foto: Pablo Unzueta/IPS

 

Valparaíso, Chile, 15/4/2014 – O incêndio que afetou o porto chileno de Valparaíso deixou à mostra o lado oculto de uma das cidades mais turísticas e conhecidas do Chile, que esconde entre seus morros um coquetel de miséria e abandono. O fogo, que começou no dia 12 e ainda se mantinha em alguns focos dois dias depois, deixou ao menos 12 mortos, duas mil casas completamente destruídas e dez mil danificadas, segundo o saldo provisório. As chamas consumiram pelo menos seis dos 42 morros dessa peculiar cidade, que se ergue como um grande anfiteatro natural que olha para o Oceano Pacífico.

Jorge Llanos, de 60 anos, vivia no Morro El Litre. No dia 12 pela manhã, saiu para seu trabalho de comerciante em uma banca de verduras na feira de Quilpué, localidade próxima à Valparaíso. “Estava voltando de ônibus quando vi o inferno. Desci e da rua olhei para o morro: minha casa, gritei. Quando cheguei já era muito tarde”, contou à IPS. Llanos dorme desde a noite do incêndio no abrigo montado na escola Grécia. Ontem ele foi até sua casa. “Não tem nada, perdi absolutamente tudo”, disse entre soluços, após visitar o lugar onde vivia perto de alguns familiares.

Valparaíso, 140 quilômetros a noroeste de Santiago, é uma baía rodeada por montanhas nas quais habita a maior parte de seus moradores, e segundo porto mais importante do país. Apenas um quilômetro separa o mar do início das morros que, povoados por numerosas casinhas coloridas, foram declarados Patrimônio da Humanidade em 2003 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

A cidade é epicentro de cultura no Chile. Nela o poeta Pablo Neruda (1904-1973), prêmio Nobel de Literatura 1971, construiu uma de suas três casas, e também é onde fica a sede do Conselho Nacional da Cultura e das Artes. Além disso, aqui também funciona o Congresso Nacional, construído no retorno à democracia, em 1990, para descentralizar os poderes do Estado.

Entretanto, 22% dos 253 mil habitantes do município vivem abaixo da linha da pobreza, enquanto a média nacional é de 14%. Além disso, é uma das áreas com maior quantidade de famílias vivendo em acampamentos, como são chamados no Chile os bairros informais e pobres sem água, luz e esgoto.

Segundo a organização não governamental Techo Chile, Valparaíso é a cidade que tem mais bairros informais em todo o país, e a região de mesmo nome abriga um terço das famílias que vivem nesses acampamentos. Em matéria de desigualdade, Valparaíso também ostenta um recorde: enquanto a renda mensal por pessoa dos 10% mais pobres da população é de apenas US$ 270, a dos 10% mais ricos supera, em média, os US$ 7.200.

“O gigantesco incêndio que afetou essa cidade traz à luz a imensa vulnerabilidade que vivem as famílias de acampamentos e que são as mais prejudicadas”, afirmou à IPS o diretor da Techo Chile, Alejandro Muñoz. Depois do incêndio, que caprichosamente se espalhou de cima para baixo, “quatro acampamentos ficaram completamente destruídos”, acrescentou.

Este é o maior incêndio em uma cidade do Chile pela área afetada, cerca de 900 hectares, mas não quanto a vítimas, nessa cidade propensa ao fogo por sua localização e pelas típicas construções de madeira. Em 1953, por exemplo, morreram 50 pessoas e em 1960 o fogo arrasou a parte plana da cidade. Muñoz recordou que Valparaíso é Patrimônio da Humanidade e Viña del Mar, município vizinho, é chamada de “cidade bela”. Mas, “depois das montanhas das duas cidades se esconde uma realidade crua e difícil de entender: a das famílias dos acampamentos”, pontuou.

Lorena Carraja e seus pais, um casal de 80 anos, dormem desde o dia 12 em um abrigo improvisado em uma quadra de tênis. Em meio ao frio e à desolação, ela recordou o momento em que as chamas atingiram sua casa. “Foi um verdadeiro inferno, cercado por um fogo que em um segundo passou de um lado a outro, com um forte vento que levava as chamas de morro para morro. Foi muito terrível, muito impressionante, nunca vi algo tão grande quanto isso, e não desejo a ninguém”, detalhou à IPS essa mulher de 50 anos.

Apesar de tudo, Carraja não perdeu sua casa, mas numerosos utensílios. “Não importa, tudo se recupera, graças a Deus estamos vivos”, afirmou. Depois suspirou e contou com voz embargada que na noite do dia 12, quando o fogo ardia nos morros, “ouvia-se pessoas gritando, crianças chorando, tinha gente desmaiada”.

As cidades do Chile foram construídas com pouco ou nenhum planejamento, dizem os especialistas, e nos cordões exteriores das grandes cidades, como Valparaíso, concentraram-se populações em busca de melhores oportunidades de vida. Mas “os governos centrais e locais não se preocuparam com a chegada das populações marginalizadas às cidades e não existiu no país uma preocupação sistemática pelas pessoas que chegam”, explicou à IPS o antropólogo Leonardo Piña, da Universidade Alberto Hurtado.

“Valparaíso não é a exceção”, completou Piña. O antropólogo destacou que as casas nos montes foram erguidas “umas sobre as outras e, pela estética exótica, nos parece de uma beleza enorme, a ponto de ser Patrimônio da Humanidade, mas não supõe uma preocupação efetiva que vá além do rótulo. O desastre mostra o abandono”, afirmou.

Na verdade, a declaração da Unesco atraiu para Valparaíso fortes investimentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, e a implantação de um ambicioso Programa de Recuperação e Desenvolvimento Urbano que gerou grandes expectativas nos habitantes do porto. Porém, os US$ 73 milhões investidos nesse programa entre 2006 e 2010 não conseguiram atenuar o abandono e a pobreza.

Para Piña, a carência central é uma política e um conjunto de normas para a instalação da população com os serviços necessários para uma vida digna. Uma longa e intensa seca, os ventos fortes e as incomuns temperaturas elevadas para o outono austral se uniram para que esse fosse “o incêndio perfeito”, tentou se desculpar o chefe regional de Valparaíso, Ricardo Bravo.

Os especialistas concordam que agora o urgente é aplacar a tragédia. Mas logo será necessária vontade política para resolver a precariedade do “porto louco”, como o chamou Neruda em sua Ode a Valparaíso, da vigia de sua casa-barco La Sebastiana. A cidade, dizia o poeta, logo deverá esquecer as lágrimas para voltar “a pintar portas verdes e janelas amarelas”. Envolverde/IPS