Foto: http://www.shutterstock.com/
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As pessoas saíam das lojas para olhar o acontecimento.

– Piriri, piriri, obá! Oi quem vem lá, obá!

A cantoria se espalhava pelos ouvidos de concreto.

– Piriri, piriri, obá!

Nas janelas dos carros, curiosos esticavam seus pescoços. O policial observava a marcha com atenção. O atendente da loja de sapatos saiu para a porta com a testa franzida em sinal de interrogação. Uma mulher chamou a atenção da amiga para juntas varrerem a cena com suas pestanas.

– Por onde passa, obá! Estremece a terra, obá!

Ainda que discreta, a marcha chamou atenção. Sem megafones, sem faixas, sem cartazes. Não havia black blocks. Não se tratava de uma manifestação comum. Não eram os “fraldas pintadas”, não era a esquerda, não era a direita. Quem compunha a marcha? Vinte e uma crianças de 5 e 6 anos e três educadores. Como reivindicação, pediam a cidade inteira. Pediam parques, praças, ruas. Pediam que a cidade recebesse as crianças com cuidado e carinho. Pediam que as pessoas olhassem nos olhos umas das outras. Pediam que ninguém se esquecesse de brincar. Pediam respiros. Pediam o retorno da poesia à presidência das imaginações. Pediam cor. Pediam que os adultos voltassem a ver o mundo ao redor.

Sim, pediam que os adultos voltassem a ver o mundo ao redor.

As crianças não gritavam frases políticas nem carregavam cartazes para requerer tais demandas. Seu ato berrava mais do que qualquer palavra ou faixa, demandava o sonho enquanto o realizava. Tratava-se de um ato de ocupação criativa da cidade, de brincação caminhativa. A marcha saiu da escola municipal de ensino infantil Gabriel Prestes com um destino final: uma biblioteca. No trajeto, andamos apenas algumas quadras, ritmados pela cantoria do “piriri, obá!”. Nesses poucos metros, sentimos a realidade se deslocar.

As pessoas ao redor haviam, de repente, quebrado suas resistências secas. Sorriam de boca aberta, escancarada de espanto positivo. As crianças riam em enxurradas, animadas, hiperpresentes. Como é raro encontramos grupos de crianças em ruas movimentadas, a marcha impressionou as pessoas. E as crianças saem pouco para as ruas por que é perigoso? Viver é perigoso, claro. Hoje em dia, as pessoas acreditam que tudo é perigoso e seguem, pouco a pouco, fugindo de tudo que as coloque em atrito com nossa cultura, que as joguem na aspereza da pele dos dias ou nas brechas lúdicas da cidade, e assim perdem o que há de mais pulsante e educativo na realidade. Quanto mais fogem do perigo, mais o alimentam. Quanto mais se iludem ao achar que escaparam, mais se sufocam. As crianças que marchavam pelas ruas do centro de São Paulo, acompanhadas por educadores, provavam que a resolução mais madura é destruir o perigo na raiz, ocupando sua casa – e ocupando-a criativamente.

No fim do dia, uma das professoras que estava na caminhança pelas ruas falou: “A cidade ouviu as vozes da infância e seus percursos!”. Outra educadora comentou: “Senti a mesma emoção quando levamos as crianças da minha escola, à pé, até o prédio do Banespa. As pessoas sorriam e viam as crianças na rua, me senti humanizando a cidade”. E eu pensava, no meu silêncio fervilhante: há algo muito errado na desconexão crônica do adulto com qualquer coisa que o cerca, um desconcerto que as crianças desmancham com um simples malabarismo de olhar. Numa conversa sobre essa experiência, cheguei a lançar uma provocação brincante: “Se fôssemos realmente radicais, colocaríamos as crianças para educar os adultos. O que temos a aprender com elas não é mais importante do que o que elas têm a aprender com a gente?”.

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Resistir e criar

Em uma cidade de cidadãos não praticantes e com altruísmo sedentário, como provocamos uma mudança na relação entre as pessoas? E as ruas, como torná-las apoteoses da mudança, lugares onde se deem mais e mais encontros potentes? “As ruas já não conduzem apenas, elas mesmas são lugares”, dizia o escritor John Brinckerhoff Jackson, um teórico que lidava com a temática das paisagens. Estimular que as crianças e jovens ocupem o território ao seu redor de maneira criativa, gerando contatos genuínos, é um ato educativo, político, de saúde e cuidado. É dizer para as novas gerações que suas presenças mudam o entorno. É apontar uma nova cultura, que demanda uma nova construção de aprendizagem, na qual a cidade como um todo é reconhecida como um organismo vivo de educação – várias expressões e projetos têm vindo à tona para tocar esse ponto crucial da mudança da nossa cultura pela percepção que a educação demanda um cuidado coletivo, como bairro-escola, cidade educadora, comunidade de aprendizagem e território educativo.

Já pensou se a aprendizagem informal que mora nas brechas das cidades for mais e mais descoberta? Quantas pessoas não aceitariam compartilhar suas histórias, ensinar o que sabem? Já imaginou se você passasse a se reconhecer como um educador das ruas? Podemos criar um novo imaginário sobre o que é educação, percebendo que a educação que transborda pela cidade é um símbolo diferente dos outros que se perpetuaram até agora. É uma raiz que vai mais fundo e encontra outras raízes – nessa linha profunda, educação é cuidado consigo mesmo, com o outro e o ambiente.

Sempre que analiso a urgência por mudanças na educação me lembro do olhar de Gandhi sobre as causas do seu tempo. Depois de se mudar para a África do Sul para trabalhar, ainda jovem, Gandhi sofreu bastante preconceito por ser indiano. Ao entrar nos trens sul-africanos, na primeira classe, exigiam que fosse transferido para a terceira classe, mas nunca consentia com esse tipo de situação. Ele sentia fortemente que não dava mais para aceitar que uma pessoa fosse menosprezada por sua cor ou nacionalidade. E esse sentimento de “não dá mais”, essa necessidade de não cooperar com uma situação ou mesmo resistir a ela, se repete quando Gandhi percebe que os indianos importavam sal da Inglaterra, sendo que era possível pegar sal diretamente na Índia. Sentindo que não dá mais para colaborar com esse tipo de situação, Gandhi estimula a não cooperação, a desobediência criativa, e leva à frente a Marcha do Sal, na qual milhares de pessoas seguiram até o litoral do Oceano Índico para buscar o sal direto na fonte. Essa urgência no olhar retorna quando Gandhi se depara com indianos pagando impostos absurdos. Não dá mais. Não dá mais.

E nessa linha de pensamento, o que “não dá mais” em relação à nossa educação deseducadora?

Não dá mais para acharmos normal um aluno passar doze anos na escola e mesmo assim não aprender nem a ler. Não dá mais para perguntarmos a jovens de 17 anos se eles têm um sonho e ouvir que a aspiração é repetir as carreiras que outros tantos hoje seguem, rumo a oceanos de infelicidade, sem que tenham refletido minimamente sobre quem são e como podem lapidar sua singularidade. Não dá mais para chegar em escolas, ficar impressionado com o número de professores de licença, muitos em depressão, e achar que um sistema que deixa a mente e o corpo das pessoas domado, mutilado e dolorido deve ser reaberto do mesmo jeitinho todos os dias. Não dá mais para acharmos que a violência é um caminho a ser seguido – e o que fazemos com as crianças, jovens e professores hoje é violência. Violentamos sonhos que nem chegam a ser sonhados. E cada vez mais acredito que só quando nos apropriarmos do ambiente ao nosso redor com ênfase, criatividade e generosidade é que deixaremos espaço para emergir uma abordagem de aprendizagem forte o suficiente para mudar a educação em larga escala.

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Recentemente uma amiga compartilhou no Facebook uma imagem com uma piada que ironiza nossas relações rachadas, dizia assim: “Fiquei sem internet por um dia e descobri que tem um pessoal aqui em casa, até sentei com eles na mesa, acho que é minha família”. E bem assim acontece com nosso entorno, imaginem a situação: “Um dia tropecei numa pedra na rua e descobri que tem um pessoal caminhando ao meu lado, até parei um deles para perguntar quem era, acho que também é um ser humano como eu”. Se não cultivarmos laços fortes com a cidade e as pessoas ao redor, aprendendo com elas, aceleraremos o processo de desumanização em curso. Viraremos máquinas, pedras, rinocerontes com sonhos natimortos. Na peça “O rinoceronte”, do franco-romeno Eugène Ionesco, há uma epidemia de “rinocerite” em uma cidade, que transforma quase todo mundo nesses grandes mamíferos de pele espessa, sem porosidade. Apenas um homem resiste – e, ainda bem, ele resiste até o final.

Resistir e criar: dois movimentos urgentes

Para continuar essa reflexão tão necessária, sugiro que você organize um encontro na rua, com amigos e desconhecidos, para dialogar sobre as seguintes perguntas: Que propostas um educador pode colocar em prática para incluir a cidade como território a ser explorado? O que seria um educador das ruas? O que dá para aprendermos caminhando, observando, perdendo-se pela cidade? Se morar em São Paulo, participe do encontro que estou organizando, no dia 3 de agosto: http://cinese.me/encontros/deriva-sobre-educacao

Resistir e criar.

Piriri, piriri, obá!

* André Gravatá é jornalista, mas pode ser definido como um “esticador de horizontes”, sempre atento às transformações ao seu redor. Com o coletivo Educ.Ação, escreveu “Volta ao Mundo em 13 Escolas”, que pode ser baixado e lido gratuitamente. Em maio de 2014, como integrante doMovimento Entusiasmo, organizou com artistas, escolas, educadores, ativistas e estudantes a Virada Educação, um evento de ocupação criativa do centro da cidade de São Paulo. Pode ser encontrado através do [email protected].

** Publicado originalmente na Coluna Livre do Portal Aprendiz.