Fiquei só um pouco espantado quando encontrei o Claudinho Boca Seca com um baita curativo desde o alto da testa até o cocuruto da cabeça, tomando uma cerveja no Riviera, numa noite de domingo. Era de se esperar que acontecesse. “Deve ter caído bêbado e batido a cabeça na quina de alguma coisa”, pensei. Mas não era isso, a não ser o fato de ter acontecido com ele bêbado, conforme ele me contou:
? Depois de tomar todas, um dia destes, voltando pra casa de carro, bati num poste e entrei de cabeça no espelho retrovisor.
Esquisito, bater a cabeça no espelho que fica no meio do carro e não em frente ao banco do motorista, mas com bêbado tudo é possível.
Claudinho é um nome que inventei pra não entregar meu amigo. Boca Seca era mesmo o apelido dele, inspirado num juiz do trabalho de São Bernardo do Campo, lá por 1970.
O tal juiz tinha uma mesa alta, grande e nas suas audiências mantinha advogados, querelantes e testemunhas a uma certa distância. De vez em quando se abaixava até ficar com a cabeça escondida pela mesa. Aquilo causava curiosidade. Por que se abaixava durante as audiências? Um dia descobriram: ele mantinha um copão de cachaça no chão e suas abaixadas eram para dar um gole, molhar o bico, como se dizia, e por isso ganhou o apelido de Juiz Boca Seca.
Claudinho tinha motivos para receber o mesmo apelido. Já chegava à faculdade meio calibrado e de vez em quando saía pra tomar mais uma. E depois da aula, ia para o Riviera, bar então frequentado pela esquerda festiva e por um pessoal bicho-grilo, como eram chamadas as pessoas que levavam uma vida pra lá de alternativa, folgada, sem trabalhar e bebendo à custa alheia.
Mas ele não era uma coisa nem outra. Nem bicho-grilo nem tão de esquerda, embora fosse bem festivo. Era assíduo no Riviera. O bar ficava em frente ao cine Belas Artes, em São Paulo, e por isso era frequentado por gente muito interessante. Inclusive moças mais que interessantes, que sempre paravam ali depois de uma sessão de cinema.
Só que o Claudinho não ia lá também para paquerar. Era fiel à mulher, Luísa (outro nome que alterei), braba e séria. Aliás, na faculdade ninguém acreditava quando tivemos a notícia de que o Claudinho estava namorando a Luísa. Ele gandaieiro total e ela séria pra chuchu. Pois namoraram e se casaram.
Voltando ao curativo na cabeça do Claudinho Boca Seca, no dia seguinte encontrei o Osvaldinho, amigo comum, e ele me contou o que havia acontecido de fato: o Claudinho levava uns esculachos da Luísa quando chegava bêbado em casa. Numa noite ela foi além do esculacho: tirou seu sapato de salto alto bem fininho e lhe deu uma sapatada na cabeça. Depois teve que levá-lo ao pronto-socorro.
? Que safado! O danado me enganou ? eu exclamei.
Mas o Osvaldinho garantiu que foi isso: a Luísa contou à Darci, mulher dele, e ela contou pra ele.
Menos de um mês depois, estava com uma turma de amigos tomando cerveja na casa do Osvaldinho, num sábado à tarde, e de repente chegou o casal Claudinho e Luísa, bem no momento em que abríamos a última garrafa de cerveja que havia. O próprio Claudinho pegou uma sacola com várias garrafas vazias e me disse:
? Vou à padaria comprar mais umas cervejas. Quer ir comigo?
Quando a gente ia comprar cerveja, normalmente bebíamos um tantão na padaria antes de voltar para casa com a sacola cheia. Então respondi:
? Vamos. Mas não vamos beber nada lá, que eu não quero levar uma sapatada na cabeça.
Percebi imediatamente que tinha dado um fora. A Luísa olhava com raiva para Darci, que olhava com raiva para o Osvaldinho, que ficou com cara de bobo; o Claudinho ficou meio paralisado, e o resto da turma olhava sorrindo para o resto de cicatriz do Claudinho. A história era um segredo que a Luísa só havia revelado a Darci, que contou só para o Osvaldinho, que contou só para mim. E ele não me contou que era um segredo tão absoluto, que acabava de virar o famigerado segredo de polichinelo.
* Publicado originalmente pela Revista Fórum, edição 98, de maio de 2011.