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Revolução na matriz ética do setor elétrico

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Márcio Santilli

Geração e consumo de energia indicam e promovem o crescimento da economia desde sempre. No Brasil, a geração centralizada – baseada em grandes usinas hidrelétricas, térmicas e nucleares – garantiu algum protagonismo soberano e a construção de um sistema interligado.

Por Márcio Santilli, do ISA –

A crise energética – e ética, econômica, fiscal, política, civilizatória – permite, no entanto, que a discussão vá além e alcance também a matriz ética do setor energético. Por um lado, a ameaça das mudanças climáticas exige repensar uma matriz cujas emissões de gases de efeito estufa precisarão ser reduzidas obrigatoriamente – e, neste ponto, o Pré-sal torna-se um contrapé estratégico. Por outro lado, o modelo de geração centralizada, assim como o dos pacotes de grandes obras de infraestrutura, é o que mais se presta a fomentar a corrupção e a ineficiência. Transcorridos dez anos do Plano de Aceleração o Crescimento (PAC), temos dezenas de obras não concluídas, como a transposição das águas do São Francisco, a ferrovia Norte-Sul, a pavimentação da BR-163. Outras custaram várias vezes o valor inicialmente anunciado, como é o caso das usinas de Belo Monte. E há até as que nem saíram do papel, embora tenham consumido bilhões. Não obstante, a economia revelou, nos últimos cinco anos, um desempenho pífio, chegando agora à depressão, com inflação e aumento das emissões de gases do efeito estufa.

Os grandes empreendimentos energéticos (petrolíferos, hidrelétricos e nucleares) colocam ainda mais urgentemente a questão ética quando concentram sobre algumas regiões e populações os impactos da geração centralizada.

Sou um cidadão urbano dependente de eletricidade. Pago em dia taxas e impostos (inclusive a conta da energia), preciso do elevador para chegar ao apartamento, tomo banho quente no final do dia, assisto ao jornal da TV. Tudo lícito: um direito e uma necessidade. Mas você acha justo que eu destrua o teu mundo para iluminar a minha casa?

Barragens na Amazônia

Madeira, Xingu e Tocantins são alguns dos grandes rios da Amazônia que já foram barrados. Agora, pretendem barrar o Tapajós. Centenas de comunidades de agricultores, ribeirinhos e índios estão tendo alteradas, para sempre, suas condições normais de vida. A construção de hidrelétricas promove migrações, desmatamentos e invasões. A qualidade das águas deteriora-se e a disponibilidade de alimentos escasseia. O que se vê nessas regiões são cidades inchadas, periferias empobrecidas, territórios devastados. A presença do Estado não se antecipa, o que deixa aberto o espaço para o aumento da criminalidade, especulação, prostituição, grilagem de terras.

Os construtores de grandes barragens alegam “compensar” os afetados com indenizações subfaturadas, reassentamentos em locais distantes ou projetos mitigatórios insustentáveis. Os rios e os que vivem deles nunca mais serão os mesmos, mas milhões serão distribuídos entre municípios, organizações, políticos e até caciques indígenas, para que ninguém se anime, no presente, a confrontar de forma contundente a degeneração do futuro.

Como se não bastasse, quem é afetado constantemente é excluído dos supostos benefícios desses projetos. É patético que um linhão atravesse uma Terra Indígena impactada por uma hidrelétrica, mas nas suas aldeias só se disponha de luz de geradores a diesel. Segundo governo e empresas do setor elétrico, seria muito alto o custo do rebaixamento da alta tensão para que a energia gerada pelo empreendimento pudesse também ser usada pelos índios.

O pressuposto é de que a felicidade de muitos justifica a tragédia de poucos. Governantes, tecnocratas, empreiteiros e alguns especialistas dizem que a justiça desse modelo está na escala dos benefícios, que se estendem a milhões de pessoas e empresas, enquanto que os danos atingem “apenas” alguns milhares. Até parece que não há alternativa…

Na verdade, isso que oficialmente denomina-se produção de energia “limpa” não atende o mínimo parâmetro ético de que se necessita para construir uma sociedade civilizada. O meu direito à luz deixa de ser legítimo quando condena não apenas à escuridão, mas à destruição de ambientes e populações, pois não há impossibilidade técnica ou econômica para que todos tenhamos luz.

Geração distribuída

Em vez de promover gincanas de corrupção e de predação, o Estado deveria promover a autogeração, também chamada de geração distribuída ou descentralizada. Ela acontece perto do consumidor, diferente do modelo centralizado, onde a energia precisa ser transportada a longas distâncias. A geração distribuída tem as virtudes de evitar investimentos em linhas de transmissão, reduzir perdas e custos, diversificar a matriz e aumentar a segurança do sistema elétrico.

Além disso, trata-se da única modalidade de geração com potencial para estimular o empreendedorismo e transformar consumidores em produtores de energia, por meio de painéis solares, microgeradores hídricos ou eólicos, aproveitamento de resíduos em empresas e residências. A geração distribuída é uma forma eficiente de evitar os grandes impactos socioambientais provocados por usinas hidrelétricas, termelétricas e nucleares e vem sendo expandida fortemente em dezenas de países, como Alemanha, China e Itália.

Esse modelo de produção de energia permite que o meu direito venha a ser até uma oportunidade, mas que nunca corresponda ao teu esbulho ou à tua destruição. Se formos incentivados a produzir energia, dotados da tecnologia necessária e organizados em nossos condomínios, locais de trabalho, empresas, comunidades e propriedades rurais, poderemos gerar muitas Itaipus, sem destruir ou degradar a casa de ninguém.

Porém, a tecnocracia energética jamais planejou e projetou o potencial de geração de energia limpa por parte da própria população. Esta só é considerada como presa passiva, convidada a consumir energia, pagando por ela todos os custos – financeiros e socioambientais – do sistema centralizado. Nas crises, sobre ela recaem tarifaços e apagões.

Imagine o que poderia acontecer se os governos decidissem investir maciçamente no desenvolvimento da capacidade do povo brasileiro para produzir energia limpa. Imagine o BNDES financiando a produção doméstica de energia. Imagine a Eletrobrás comprando o excedente produzido pela sociedade para vender a quem precisa de mais energia do que pode produzir. Imagine as concessionárias de energia investindo em linhas de transmissão inteligentes, em tecnologias para armazenar excedentes. Imagine a mudança cultural que a conversão de despesa em renda que a produção doméstica pode gerar…

Apostar na capacidade de geração do povo brasileiro é a melhor resposta possível à demanda, capaz de alcançar a escala necessária para reorientar o país rumo à economia sem carbono. Das opções estratégicas disponíveis, só ela resolve o dilema ético, já que prescinde da destruição de mundos alheios para iluminar o nosso. (ISA/ #Envolverde)

* Publicado originalmente no site Instituto Socioambiental.