Por Neuza Árbocz, jornalista e colunista da Envolverde –
Há uma densa camada de ódio presente na atmosfera terrestre. Pode-se imaginar que é coisa recente, fruto da vida estressada do cotidiano hiper-urbano, industrializado, onde a competição sadia e prazerosa deu lugar, há muito, a disputas vorazes e sem escrúpulos.
O bem-estar coletivo parece esvanecer frente à ganância e ânsia de garantir o seu.
Mas, minha alma feminina há algum tempo se deu conta que esse ódio e ímpeto têm raízes verdadeiramente antigas. Basta observarmos a forma com que nos expressamos. Peguemos, por exemplo, a referência a bichos.
Todo animal dócil, que serve à vida humana, é sinônimo de xingamentos. Vaca e galinha, espécies que provêm com seu sangue e seus corpos o sustento de inúmeras pessoas, são denominações que desmerecem qualquer mulher (só não é assim para touro e galo porque são usados para esportes violentos e cruéis, mas valeria para frangos e bois, no caso dos homens). Até mesmo cão, ou cadela, animais tão fiéis aos seus donos, capazes de se sacrificarem para os protegerem, são usados para identificar gente dominada por instintos egoístas imediatistas, pouco altruístas. O cavalo, tão prestativo, é sinônimo de desajeito e brutalidade.
Enquanto gatos e gatas, seres bem mais autônomos, que não se deixam conduzir e que roçam sua perna não raro apenas quando querem algo em troca, são apelidos de pessoas interessantes e desejáveis.
Quando se quer elogiar alguém se emprega os nomes dos grandes predadores. Leão ou leoa, para pessoas de coragem – embora esses felinos devorem, em bandos, um solitário animal herbívoro tão frágil como a gazela. Tigre, tubarão ou pantera, para alguém admirável, cheio de recursos.
Este emprego das espécies reflete a valorização do voraz, dos valentões, daqueles que buscam impor sua forma de ser, sua pressa e suas vontades, à revelia do que provocam aos demais.
Mesmo os paladinos, que se incubem de lutar contra injustiças, abraçam esse linguajar e, com frequência, comportamentos e táticas predadoras. Ferem, destroem e abusam, em uma soma nefasta de mais do mesmo incapaz de gerar uma mudança verdadeira. Ao adicionar truculência sobre truculência, esquecem-se de que “olho por olho, dente por dente” forma uma terra de cegos e banguelas…
A admiração do arquétipo predador precisa acabar.
Ela é a base para sentimentos capazes de arrastar grupos para anos de guerra fratricidas, como a da Síria.
Será mesmo difícil notar que a verdadeira valentia está com aqueles que encaram sem perder o humor e o entusiasmo os desafios banais da vida? Aqueles que sabem ceder em seus anseios individuais, pelo bem comum? Sujeitam-se a regras de trânsito que impõem pequenas velocidades; dão cabo do cesto de roupa suja para lavar e do próprio banheiro para limpar, sem reclamar; desistem de impor suas ideias, para manter a paz… e por aí vai?
Afinal, que cotidiano teríamos sem pessoas dispostas a atuar pelo coletivo, a apaziguar uma briga ou executar pequenas e essenciais tarefas rotineiras? Há inúmeros e inúmeras valentes que, por exemplo, sacodem horas em condução pública, para chegar cedo e arrumar bagunças, eliminar imundices; e assim, deixar ambientes limpos, onde gênios criarão programas incríveis, grandes reuniões acontecerão e cirurgiões salvarão vidas. Isso sob um véu de invisibilidade quase que total – pois só serão lembrados caso falharem e esquecerem alguma poeira pelo caminho.
Quanta coragem não contém a humildade?
As pessoas de real valor reconhecem esta interligação entre todos os seres e suas atividades. Não se sentem melhores, nem piores que quem quer que seja; assim como jamais subjugariam ou se fariam servir à força ou por sedução vil.
Já passa da hora de valorizarmos a gentileza, o cuidado e a disposição dos que servem, de coração.
A genuína bravura está muito mais no serviço altruísta e em opor resistência sim aos abusos, mas sem repeti-los, como muito bem demonstrou Gandhi.
Já passa da hora de valorizarmos quem se sacrifica silenciosa e discretamente pelos demais, como as vacas, cadelas e galinhas – tá bom, estas últimas nem tão silenciosamente, mas vocês me entenderam.
E também já passa da hora de qualquer pessoa muito submissa e oprimida ganhar autonomia e confiança em si própria a ponto de expressar, com elegância e desenvoltura, os nãos que desejar dizer.
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Da autora: Como surgiu este artigo?
A maldade e truculência sempre me causaram grande espanto e ao refletir sobre suas origens dei-me conta de como nosso linguajar reforça o culto aos predadores.
Relatei esta percepção ao meu companheiro que me incentivou a escrever e insistiu no título que imaginei inicialmente de Me chame sim de vaca, galinha e cadela… Com ele, talvez eu recebesse uma chuva de represálias de pessoas que só leem títulos e manchetes ou as frequentes acusações que banalizam sensibilidade como “mimimis”. Os homens também sofrem com esta imposição cultural da força bruta como caminho válido para deixar sua marca no mundo. O convite é para re-significarmos juntos e juntas as estruturas mentais que norteiam nossas interações no mundo.
(#Envolverde)