ODS10

Alvos de ataque de deputado do PSL, quilombolas de Alcântara promovem biodiversidade

Por Claudia Marreiros e Layo Bulhão, em Alcântara (MA), De Olho nos Ruralistas – 

O episódio foi protagonizado pelo deputado governista Bibo Nunes (PSL-RS). Ele ironizou os apartes feitos por parlamentares ao ministro Marcos Pontes, que pediam uma garantia de que a base de Alcântara não avançará sobre o território quilombola numa eventual expansão:

– Se vai ser uma tragédia tão grande para os quilombolas, que se leve [o Centro de Lançamento] para outro estado. Que fique lá uma fabriqueta de arco e flecha.

Indignados com a fala, deputados maranhenses exigiram uma retratação do colega, que foi negada: “É bem sério o que falei”.

Nunes não é o primeiro expoente do PSL a manifestar desprezo pelos remanescentes de quilombos. Em 2017, em uma palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro se referiu a eles em arrobas e disse que não serviam “nem para procriar”.

De Olho nos Ruralistas foi à comunidade de Mamuna, uma das mais impactadas pela Base de Alcântara.  Diferentemente da visão preconceituosa do deputado gaúcho, os quilombolas demonstram um amplo conhecimento agrícola e vêm explorando o potencial da biodiversidade amazônica. Reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial do Brasil, o sistema agrícola dos quilombolas tem práticas que chamam a atenção da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

‘TODO MUNDO TÁ DE OLHO AQUI EM MAMUNA’

Em Alcântara, práticas agrícolas reconhecidas como patrimônio da humanidade. (Fotos: Claudia Marreiros/De Olho nos Ruralistas)

Conhecida “porteira” para os demais territórios quilombolas de Alcântara, a comunidade de Mamuna tem na agricultura, na pesca e no extrativismo sua principal fonte de renda e de subsistência. Entre os principais cultivos está a mamona, cujo plantio foi trazido da África e inspirou o nome do local. Das sementes, os quilombolas extraem o óleo de rícino, que possui propriedades antibacterianas, analgésicas e anti-inflamatórias, sendo comumente empregado na indústria farmacêutica e cosmética.

Além da mamona, a região também oferece outras plantas medicinais, como o bacuri, beneficiado pelos quilombolas para a produção de uma manteiga, aplicada em lesões. Outra atividade de grande importância econômica e cultural é a extração do azeite do coco de babaçu, protagonizada pelas mulheres da comunidade, integrantes do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco de Babaçu.

E não para por aí. A comunidade também produz e comercializa farinha de mandioca, arroz, abóbora, verduras e melancia, reconhecida em toda região pela qualidade. Segundo uma das lideranças, que, por receio de sofrer represálias, pediu para não ser identificada, essa imagem distorcida criada sobre os quilombolas atende aos interesses daqueles que querem lhes tomar as terras.

– Todo olho do mundo tá aqui em Mamuna. Muitos querem um pedacinho de Mamuna porque é um paraíso natural. Você olha aqui tudo em volta é natureza, é mata preservada. Eles dizem lá fora que a gente não sabe aproveitar a terra. Mas aproveitar de que maneira? Destruir ela?

Diferentemente de outros núcleos quilombolas, Mamuna não esteve entre as comunidades remanejadas durante a construção do Centro de Lançamentos de Alcântara. Entre 1986 e 1988, no governo de José Sarney, 312 famílias sofreram remanejamento compulsório para sete “agrovilas”, cujo solo era impróprio para o plantio e, o acesso à pesca, outra fonte importante de subsistência, limitado.

Os quilombolas pediram para ser identificados por nomes de árvores. Chamamos essa primeira líder de Amendoeira. Para ela, a resistência daquela época ainda ecoa entre os moradores de Mamuna.

– Aqui a gente tá mantendo nossas raízes, mantendo nossa cultura, mantendo a história de toda uma geração que já se foi mas que deixou seus remanescentes e a gente tem que continuar essa história, a gente não pode deixar nossa história morrer. Porque um povo sem história, ele não é nada, ele não tem uma identidade. Ele não sabe de onde ele vem e nem pra onde ele vai.

Amendoeira diz que os quilombolas têm de dar valor a essa terra, pra que ela venha a continuar viva e reproduzindo vida, “que é o que ela faz pra nós de melhor”. “Ela reproduz a vida e se a gente for destruir, a gente vai tá destruindo primeiramente nós. Porque se nós não tiver onde plantar, não tem como nós sobreviver”.

BASE DE LANÇAMENTOS TROUXE CONFLITOS À REGIÃO

O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas defendido na Câmara pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, é o novo capítulo de uma história que vem se desenrolando nos últimos 30 anos com grandes impactos para a população quilombola.

Idealizado durante a ditadura militar como ponto de partida de um ambicioso projeto aeroespacial, o Centro de Lançamento de Alcântara ocupa 62 mil hectares de uma das áreas mais cobiçadas do mundo para o lançamento de foguetes por sua proximidade à Linha do Equador, o que gera uma economia significativa de combustível.

Concluído em 1987, no governo Sarney, o centro foi construído à custa de desapropriações em massa, iniciando um longo conflito que, ainda hoje, afeta a vida das comunidades remanescentes de quilombos.

Após a explosão da torre de lançamentos, em 2003, o centro foi paralisado e, desde então, o governo brasileiro vem tentando sua reativação por meio de acordos bilaterais. O primeiro, com a Ucrânia, resultou na criação da empresa binacional Alcântara Cyclone Space que, desde o início, manteve relações tensas com a comunidade de Mamuna.

Em fevereiro de 2008, três anos após sua criação, funcionários terceirizados da Cyclone realizaram exames e perfurações na área onde seria construída uma nova torre, fora dos limites do Centro de Lançamentos. Durante o processo, destruíram plantações e, sem autorização prévia, derrubaram vegetação nativa, levando os quilombolas a levantar barricadas para paralisar as operações. Nove meses depois, após a Justiça emitir decisão favorável à comunidade de Mamuna, a empresa aceitou um acordo no qual se comprometeu a não avançar além do perímetro do centro.

Com o novo acordo firmado por Bolsonaro com os Estados Unidos – após o projeto brasileiro-ucraniano chegar a um retumbante fracasso, com prejuízo aos cofres públicos estimado em R$ 484 milhões -, as lideranças de Mamuna temem que novos conflitos aconteçam. “A gente deixa bem claro pro governo e pra todas as pessoas que nós não somos contra o desenvolvimento tecnológico”, afirma Mangueira, outra liderança visitada em Alcântara. “Somos contra a expansão”.

Durante a audiência, o ministro Marcos Pontes evitou falar sobre o tema e disse que a discussão sobre os quilombolas viria numa segunda fase, caso o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas seja aprovado no Congresso: “Tem os problemas do passado. Eles precisam ser tratados, mas não agora”.

O Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar de Alcântara apresentaram uma queixa formal à Organização Internacional do Trabalho (OIT) no dia 4, diante das violações de direitos em Alcântara. O anúncio foi feito na sede em São Luís da Defensoria Pública da União.

DEPUTADO É FINANCIADO POR EMPRESÁRIO DO TABACO

Apesar de não pertencer formalmente à bancada ruralista, adversária tradicional dos quilombolas na luta pela demarcação de terras, o deputado Bibo Nunes, jornalista e apresentador de televisão, é financiado por pessoas ligadas ao setor. Durante sua campanha à Câmara em 2018, ele recebeu R$ 30 mil do empresário uruguaio Juan Antonio Bruno Perroni, segundo dados da plataforma DivulgaCand.

O aporte quase lhe fez perder o mandato. Em novembro, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) recomendou a desaprovação das contas de Bibo Nunes pelo fato da doação de campanha por cidadão estrangeiro ser vetada pela legislação eleitoral.

Perroni é dono da processadora de tabaco Brasfumo e da indústria de cigarros Ciamerica, ambas baseadas em Venâncio Aires (RS). Mas, apesar da doação feita ao político, que acredita que quilombos são “fabriquetas de arco e flecha”, os negócios do uruguaio vão mal. Com dívidas que somam R$ 238 milhões, a Brasfumo entrou em recuperação judicial em 2012.

(#Envolverde)