por Luiz Queiroz d’Orange* –
Esperava-se muito pouco da agenda ambiental de um governo Bolsonaro, é verdade. Afinal, as evidências eram abundantes: o termo “meio ambiente” só recebeu uma única menção no programa de governo do então candidato do PSL. No final de 2018, já eleito, Bolsonaro chegou a defender abertamente o fim do Ministério do Meio Ambiente e só recuou devido às pressões internacionais. Em dezembro, repetiu que o IBAMA era uma “indústria de multas” e que ia mudar isso aí, tá ok?
Contrariando a turma que acreditava que eram apenas bravatas de campanha, ao assumir a presidência o capitão arregaçou as mangas e já na reforma ministerial de janeiro tratou de sequestrar a Agência Nacional de Águas para o Ministério de Desenvolvimento Regional e o Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura. Na mesma tacada, acabou com a área de Mudanças Climáticas do Itamaraty, destaque da política internacional brasileira, e tratou de asfixiar os setores correspondentes no MMA – onde, aliás, acabou também com qualquer menção ao combate ao desmatamento, justo quando os índices de desmatamento disparam na Amazônia. Na agenda indígena, jogou a FUNAI para um lado (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos) e a demarcação de Terras Indígenas para o outro (Ministério da Agricultura), no que deve ser o único caso no planeta onde fazendeiros são responsáveis pela delimitação de reservas para os índios.
Depois de reorganizar o tabuleiro institucional ao seu gosto peculiar, o governo destacou o Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (Novo/SP) para pilotar a nova agenda ambiental ao estilo Bolsonaro. O ministro Salles é aquele que ganhou notoriedade por ser o primeiro ministro ficha suja em um governo que se elegeu com a bandeira anticorrupção e por ser o primeiro ministro de meio ambiente que contesta o legado de Chico Mendes para o ambientalismo brasileiro. Logo no início de sua gestão, elegeu as ONGs como grande inimigas do governo e suspendeu todos os contratos e convênios com o terceiro setor, só para voltar atrás na sequência e transformar a suspensão em um pente-fino.
Representante explícito dos ruralistas (foi diretor da Sociedade Rural Brasileira) e defensor da violência contra a esquerda e contra os movimentos sociais, Salles desempenha com desenvoltura o papel de antiministro do meio ambiente – chefia um ministério que não deveria existir na visão do governo. No começo de abril, Bolsonaro e Salles produziram normativos que contribuem para esterilizar ainda mais a atuação dos órgãos ambientais: o decreto do “revogaço” extinguiu diversos colegiados fundamentais para o funcionamento da máquina ambiental e outro decreto criou uma instância para revisar autos de infração ambiental, substituindo a “indústria de multas” pela “anistia prévia” ao infrator. Esse mesmo decreto revisou as regras para conversão de multas ambientais, suspendendo a modalidade de conversão indireta que havia sido regulamentada recentemente pelo IBAMA para gerar investimento em programas estruturantes de recuperação ambiental. A primeira fase do Programa Nacional de Conversão de Multas (biênio 2019/2020) arrecadou cerca de R$1,1 bilhão e iria aplicar esses recursos na recuperação ambiental nas Bacias do São Francisco e do Parnaíba antes de ter sido suspenso pelo governo. Ou seja, o imperativo ideológico de asfixiar as ONGs ambientalistas superou os ganhos potenciais de um programa bilionário de investimentos estratégicos em conservação.
A lista de ataques, polêmicas e desmontes parece inacreditável para um governo que mal superou os primeiros 100 dias, mas ainda nem mencionamos a articulação para flexibilização do licenciamento ambiental, para a liberação da caça de espécies silvestres, a escandalosa liberação de agrotóxicos, a desautorização da fiscalização de madeireiras em Rondônia, ou a surreal sessão inaugural do CONAMA neste ano, conduzida com mão de ferro pelo novo ministro e com direito a conselheiros barrados e relatos de agressão.
O autoritarismo, aliás, parece estar se confirmando como marca da gestão de Salles. Desde o começo de março vigora uma lei da mordaça aplicada ao IBAMA e ao ICMBio, que só podem se manifestar por meio da Assessoria de Comunicação do MMA. Há relatos de “vistorias” constrangedoras do ministro em prédios e unidades, em tom de revista de oficial superior, para avaliar se as mesas e ambientes estariam devidamente livres de “manifestações políticas”. Exonerações e demissões arbitrárias têm sido registradas em todo Brasil e desencadearam um clima de caça-às-bruxas em toda a administração. O episódio ocorrido em Tavares/RS, onde Salles provocou uma reação orgástica em uma plateia de ruralistas ao anunciar a abertura de processos administrativos para punir servidores do ICMBio por não estarem presentes no evento (para o qual não haviam sido convidados), é ilustrativo da tendência autoritária do ministro. O episódio levou ao pedido de demissão do então presidente do ICMBio, Adalberto Eberhard. O conjunto da obra até o momento ensejou uma carta aberta da Associação Nacional de Servidores da Carreira de Meio Ambiente (ASCEMA NACIONAL), onde os servidores manifestam repúdio à atuação do ministro Salles, tido como “ardiloso, falacioso e grosseiro”. Esvaziados de suas funções técnicas e administrativas, outros 3 diretores do ICMBio pediram demissão em um ato conjunto, como que fugindo do barco antes do naufrágio iminente. Possivelmente para “botar ordem na casa”, Ricardo Salles transformou o ICMBio em uma sucursal da Polícia Militar de SP, nomeando policiais para todo o primeiro escalão do instituto, além da presidência. A militarização da área ambiental já atinge parcela significativa dos cargos de alto escalão no Ministério do Meio Ambiente, IBAMA e ICMBio.
Infelizmente, tudo indica que o pacote de retrocessos está longe de chegar ao fim. A possível fusão entre o IBAMA e o ICMBio, os dois principais braços executivos do MMA, deixou de ser conversa de bastidores e passou a ser discutida abertamente na imprensa. O rumor já havia sido semeado durante a campanha e a “incorporação” do ICMBio no IBAMA foi defendida pela equipe de transição da área ambiental. Uma das versões que circula em Brasília é que a fusão implicaria na criação de um novo órgão, um Instituto Federal do Meio Ambiente ou algo similar. Pra quem é da área, a medida cheira a um revanchismo pueril: o presidente que não gosta do IBAMA e o ministro que despreza Chico Mendes tratam de apagar do registro institucional brasileiro as duas marcas de seu desagrado.
Parece especialmente cruel que o IBAMA, ao comemorar 30 anos de existência, esteja ameaçado de extinção como as próprias espécies que tenta preservar. O IBAMA é mais antigo que o próprio Ministério do Meio Ambiente e tradicionalmente encarna o símbolo da defesa ambiental no Brasil. No afã de reescrever a história do ambientalismo brasileiro ao seu feitio, a dupla Bolsonaro/Salles aparenta não ter escrúpulos em jogar no lixo todo o capital simbólico acumulado em 30 anos de IBAMA; muito menos a recente, porém relevante história do ICMBio.
O desmonte da agenda ambiental promovido pelo governo Bolsonaro supera as previsões mais pessimistas e a preocupação chegou até à prestigiada revista Nature. Enquanto isso, o mundo assiste apreensivo e ensaia boicotes aos produtos oriundos de desmatamento no governo Bolsonaro.
É difícil prever onde vai parar esse processo de desmonte da área ambiental, mas em pouco mais de 3 meses o capitão Bolsonaro e seus correligionários conseguiram implodir qualquer protagonismo que o país tivesse na agenda global de sustentabilidade. Os danos à imagem brasileira já são evidentes: o Museu Americano de História Natural de Nova Iorque se recusou a sediar evento que homenageará o presidente Bolsonaro, em função dos objetivos declarados do governo em relação à proteção da Amazônia.
E por fim, é importante ressaltar que nisso Bolsonaro não era fake news – sua campanha falou claramente que iria desmontar a gestão ambiental no Brasil. Quem votou no capitão, com as mãos fazendo gesto de arminha, sabia que estava hipotecando um futuro mais sustentável e próspero para o Brasil. É inescapável a sabedoria do Barão de Itararé: “de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo”.
* O autor é analista ambiental do IBAMA. Utiliza um pseudônimo porque o mar não está pra peixe.
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