Opinião

Vidas indígenas importam? Por que as vemos tão longe de nós?

por Samyra Crespo, especial para a Envolverde – 

Ouvi em Foz de Iguaçu – onde se oferecia programação turistica com os Guaranis – um menino hospedado em meu hotel perguntar à mãe: onde estão os índios? Ao que ela respondeu “nas tribos, nas aldeias – longe”.

O menino ficou por um instante cismado depois voltou à carga: “tem criança lá?”. A mãe respondeu negligente “Acho que tem”.

A partir daí não acompanhei e me dispus a escrever este texto. Exatamente quando só se fala de índios no Norte e na Amazônia – região que concentra 17% deles e os 55 grupos/tribos isolados – com quase ou nenhum contato com a nossa cultura.

O censo indígena escorrega entre 400 e 600 mil indígenas hoje no Brasil.

Eles se distribuem por quase todo o território nacional.

Xamã do povo Kuikuro. do Xingu – foto Dal Marcondes

Quem primeiro se dedicou ao censo, à identificação cuidadosa das centenas de etnias e da valorização da cultura indígena foi uma ONG – O ISA- INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Falarei adiante dela e do notável trabalho que vem desenvolvendo desde o inicio dos anos 90′. Com publicações, com documentação pública. Com trabalho duro e heroísmo. E muita, muita solidariedade.

Por agora, quero dizer que os índios estão em todos os lugares, espalhados, e nem todos em aldeamentos ou reservas como se pensa.

Só para exemplificar, vou destacar os maiores grupos e sua localização: Guaranis no sul do Brasil (46.000).

Lado extremo oposto, Ticunas no Rio Solimões (30.000); Caigangues (25.000) espalhados por SP, SC e RGS.

Macuxi (24.000 em 140 aldeias) estão em Rondônia. Terena no Centro-Oeste (20.000).

Guajajaras no Maranhão (20.000). Ianonamis 13.000 na maior reserva existente e Potiguara no Nordeste (10.000). Para facilitar arredondei números. Mas eles estão disponíveis em toda a sua precisão, na internet.

O ISA começou operar em 1994 embora suas lideranças já tivessem presença anterior na Amazônia.

Dessa época lembro bem do antropólogo Beto Ricardo e Fanny sua mulher, e depois do Kique (já falecido), do Capobianco (que se tornaria mais tarde braço direito da Ministra Marina Silva); do Márcio Santilli e da menina, hoje veterana, aguerrida ativista, Adriana Ramos.

O ISA prestou serviço inestimável quando foi definido o direito constitucional (1988) dos indígenas terem suas terras demarcadas. Uma justiça histórica a ser cumprida, infelizmente ainda hoje, passado tanto tempo.

Naqueles idos, o ISA e seus técnicos se embrenharam no mato, contaram os indígenas, registraram sua história e, principalmente, os informou sobre o que significava a demarcação e como proceder. O trabalho de mapeamento que o ISA fez foi e é extraordinário, se pensarmos as ferramentas tecnológicas da época e as dificuldades de logística.

O direito constitucional dos índios ao seu território – que chamamos reservas, encontra muitos obstáculos à implementação. Grileiros, posseiros, cartórios corruptos, invasões e judicialização são alguns deles. E todos ouvimos o atual Presidente dizer que não demarcará um centímetro de terra indígena. Nunca um lider da Nação foi tão hostil aos povos originários do Brasil e aos seus direitos – inscritos em nossa Carta Magna.

As invasões e a cobiça não datam de agora, é certo, mas adquirem neste momento o status de impunidade incentivada pelo Chefe da Nação.

A década de 90 até meados de 2000 – período áureo da redemocratização do País, o resgate social da população indígena conheceu admiráveis esforços. A valorização da sua cultura diversa e tradicional, o seu conhecimento dos animais e da floresta, uma herança imensa que desconhecíamos. A valorização da sua produção artesanal foi outra frente que o ISA abraçou. Lembro aqui a base do ISA no Alto do Rio Negro, e o melhoramento das técnicas artesanais para o mercado do “comércio justo”, não predatório. Sua cestaria e adereços, antes eram comprados por centavos e vendidos a cotação de dólar nos hoteis de luxo bem como lojas de souvenires. Os indígenas ficavam com os tostões.

Este cenário ameno de relações e de trabalho duro para melhorar a qualidade de vida da população indígena está perigosamente alterado.

Nossos indígenas estão sob severo ataque e assustados. Sentem-se encurralados. Não somente na Amazônia, mas lá se desenrola o epicentro desta crise impiedosamente provocada.

Há toda uma literatura que pode ser facilmente resgatada sobre a evolução das organizações e coletivos indígenas. No presente, além do ISA existem dezenas de entidades que defendem os direitos dos nossos irmãos. E eles não vão se entregar ao sacrifício como carneiros.

Ao reduzi-los à categoria “índio =nativo=primitivo”, longe do que somos e longe e de onde nos encontramos, estamos – encerrados na nossa cultura industrial e cosmopolita do sudeste – ajudando pela omissão a chocar o ovo da Serpente. Serpente com M-maiúsculo mesmo.

Acha exagero falar num possível genocídio?

Que sinais você está esperando ver para se convencer disto?

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”.

(#Envolverde)