Opinião

Quando não existe plano B

por Mônica Sodré,  da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade – RAPS –

Queima de petróleo, carvão e gás natural para a geração de energia. Uso de combustíveis fósseis para transporte. Desmatamento desenfreado e uso degradante do solo. Destruição das florestas. Estes são alguns dos maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global e provocam desastres naturais de grandes proporções, desencadeiam epidemias cada vez mais frequentes e colocam a vida do planeta em risco. A única solução para frear os efeitos da crise climática é zerar as emissões de carbono dentro de 30 anos.

Este é o alerta do livro “Crise Climática e o Green New Deal Global”, de C.J. Polychroniou, lançado no Brasil pela editora Raça Nova no fim de 2020. A obra é uma conversa do autor com Noam Chomsky e Robert Pollin e traz uma mensagem clara: a questão climática é a maior crise existencial de todos os tempos, a questão pública de mais difícil resolução que coloca a sobrevivência da humanidade em risco, e estamos fracassando miserável e coletivamente na tarefa de encontrar soluções.

O livro chega em sintonia com as declarações de muitos países que estabeleceram metas para zerar as emissões de gases de efeito estufa até 2050, e conclama as nações a se unirem numa concertação pelo clima. Reconhece, no entanto, que a tarefa não será fácil.

Os tempos áridos em que vivemos, em que o negacionismo científico e climático pulverizou-se por grande parte do globo, colocam imensas dificuldades para que o planeta avance no sentido do desenvolvimento sustentável. Talvez por isso a obra dê ênfase especial às questões políticas e à necessidade de que não nos rendamos aos argumentos do custo financeiro desta virada. Defende a necessidade de um novo acordo global – um Green New Deal – para que a recuperação econômica mundial, em especial em tempos de pandemia, possa ocorrer de modo ambiental e socialmente responsável e sustentável.

Para isso, o livro destaca quatro compromissos fundamentais: (i) o respeito à ciência – as previsões do IPCC precisam ser levadas a sério, o que significa que as reduções globais de gases de efeito estufa precisam ser da ordem de 45% até 2030 e zero até 2050; (ii) a geração de energia deve ser o principal puxador da transição – o carro chefe para uma economia livre de carbono está na ampliação dos padrões de eficiência energética e no investimento em energias renováveis tais como solar, eólica e biogás; (iii) o componente social, implicando que ninguém deve ficar para trás, o que significa em especial garantir a criação de novos postos de trabalho para transacionar trabalhadores oriundos do setor da indústria de combustíveis fosseis e (iv) uma mudança, um “reset” no capitalismo, de modo que os ganhos sejam distribuídos de maneira mais igual e que isso signifique melhores condições de vida e oportunidade para trabalhadores e população de todo o mundo.

E quais são as principais razões do nosso fracasso como humanidade que levaram à degradação do clima global? Primeiramente, a obra aponta que falhamos em reconhecer o tamanho do problema e nos importamos pouco porque achamos que não estaremos aqui para ver. Legisladores negligentes, bancos que destinam volumosos recursos à extração de combustíveis fosseis, a imprensa voraz por propagandear tecnologias capazes de nos levar à destruição e uma concepção equivocada de tomadores de decisão que destinam bilhões a suas indústrias bélicas, mas incapazes de espelhar essa preocupação para a proteção do planeta. Na linha da solução, quatro também são os eixos que demandam enfrentamento: (i) combate ao desmatamento, (ii) mudanças no uso da terra – em especial para a pecuária – (iii) dependência de fertilizantes nitrogenados, pesticidas e herbicidas sintéticos e (iv) combate ao desperdício de alimentos, que deve vir acompanhado também de uma mudança na dieta global para bases vegetais.

A segunda razão do fracasso, ainda segundo o livro, é o capitalismo e sua vertente neoliberal, responsável pela degradação das condições de vida dos trabalhadores, pela desarticulação da vida social organizada – tais como os sindicatos –  e pela disparidade de tratamento estatal oferecido ao cidadão comum – legado à própria sorte – em comparação ao oferecido a grandes corporações, passíveis de resgates quando as coisas vão mal. É preciso destacar, ainda, que um fator chave do agravamento da crise climática é a sua relação com as desigualdades e sua tendência de aprofundá-las. As consequências, desigualmente distribuídas, incidirão sobretudo nas populações historicamente vulneráveis e marginalizadas, que dependem dos postos de trabalho ligados aos setores de combustíveis fósseis para sobreviver. Assim, qualquer plano de estabilização do clima que se pretenda eficaz precisa colocar em seu centro a garantia de que trabalhadores possam fazer uma transição justa e gradual para essa economia de baixo carbono, o que inclui, entre outros, o acesso estatal a seguros financeiros contra danos climáticos a preços acessíveis.

A lógica capitalista, seu apetite pela queima de combustíveis fósseis e seu elemento de desagregação social, se não for contida, é o principal ingrediente da receita para a destruição da vida. Dado o pouco tempo à frente e a certeza de que o mercado não nos salvará sozinho, é preciso um esforço coordenado em múltiplas frentes e combinando diferentes tipos de política, como investimentos públicos nos setores fundamentais da economia, subsídios públicos a investimentos verdes privados e regulações fortes.

Isso significa assumir que o Estado terá algum nível de intervenção na economia, de modo os governos sejam indutores da transformação e propulsores de sua velocidade, aumentando, por exemplo, o investimento púbico em energias renováveis, limitando a queima de carvão e gás pelas usinas e garantindo a estabilidade de preços da energia produzida por fontes renováveis, as políticas do tipo “feed-in”, por meio de compras privadas a partir de contratos de longo prazo. Ainda, esses tipos devem vir combinados com políticas de desincentivo ao consumo de combustíveis de origem fóssil, como a taxação de carbono ou o teto de carbono, importantes, mas não suficientes para dar conta do problema sozinhas. Essas últimas, para não penalizarem os mais pobres, devem vir acompanhadas de uma restituição às famílias de baixa renda dos valores arrecadados com ela, de modo a aliviar o peso da dependência desse tipo de combustível na composição de seus orçamentos domésticos.

Ao tomar contato com os detalhes desse grande acordo global, o livro coloca duas dúvidas na cabeça do leitor: “quanto isso custa” e “quem vai pagar essa conta”. A resposta de Polin é clara: comparativamente, demanda menos do PIB americano do que demandou o esforço financeiro ligado à segunda guerra mundial. Polin afirma ainda que tal compromisso exigirá até 2050 uma redução no consumo de petróleo, carvão e gás natural da ordem de 3.5% inicialmente e um investimento de 2.5% do PIB global ao ano até 2050. Esse investimento deveria ser 50% público e 50% privado e concentrado nas áreas de melhora da eficiência energética de edifícios, automóveis e sistemas de transporte público existentes e de expansão das fontes de energia renováveis, com preços competitivos para fazer frente aos combustíveis de origem fóssil e nuclear. Projetos de geoengenharia são descartados e vistos como inviáveis para a crise climática, bem como a geração de energia nuclear, essa pelos altos riscos envolvidos.

Concretamente, o autor propõe que esse Green New Deal seja financiado a partir de quatro vertentes. O primeiro deles, a criação de um imposto sobre carbono, com direcionamento de 75% da receita para a população e 25% para projetos de investimento em energia limpa. O segundo, a partir da transferência de recursos militares de todos os países, em especial dos EUA. O terceiro, a implementação de um programa de empréstimo de títulos verdes lançado pelo FED e pelo Banco Central Europeu e, por fim, a erradicação de todos os subsídios a combustíveis fósseis e redirecionamento de 25% desses fundos para energia limpa.

Se o financiamento é um desafio superável, os autores destacam, no entanto, que o maior desafio é certamente o político. Garantir que exista vontade política suficiente para derrotar os interesses da indústria ligada aos combustíveis fósseis, de encontrar um jeito de promover o investimento público e criar incentivos para os investimentos privados é tarefa para ontem. A sugestão é que os desenvolvedores interessados num programa de estímulos identifiquem um subgrupo de projetos de investimentos verdes que, de maneira concreta, podem ser implementados em grande escala em pouco tempo. Como exemplo, a modernização da eficiência energética em todos os edifícios públicos e comerciais, o que inclui melhoria do isolamento térmico, substituição das lâmpadas por LED, substituição de sistemas antigos de ar condicionado e aquecimento. Tais iniciativas, além de baixar as emissões de gases de efeito estufa (GEE), geram empregos de maneira rápida. Adicionalmente, é preciso demonstrar politicamente que o objetivo de estabilização do clima está em perfeita sintonia com a abertura de mais oportunidades descentes de trabalho, elevando a renda e reduzindo a pobreza em diferentes locais.

eleição de Biden e Harris, ocorrida após o lançamento do livro, é provavelmente um dos marcos mais importantes dos últimos anos na direção de um compromisso político e uma guinada em relação ao clima. Que os ventos do norte possam ajudar a mudar a geopolítica da nossa sobrevivência. Que do lado de cá dos trópicos, em que ocupamos a posição de 5º maior emissor de carbono e a pecha de país que mais devasta florestas no mundo, tenhamos lideranças políticas capazes de tomar as decisões necessárias ao século 21, não só em relação ao clima, mas também ao “não deixar ninguém para trás”. No momento em que o Brasil soma mais de 350 mil mortes pela covid-19, em que a floresta amazônica queima em níveis recordes e em que o executivo federal anuncia como uma das prioridades do ano a liberação da mineração em terra indígena, não há dúvidas de que o maior desafio, também aqui, é de ordem política.

Mônica Sodré é cientista política e diretora executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade – RAPS.

 

 

 

(#Envolverde)