Como o direito à alimentação escolar tem sido garantido – e também violado – durante a pandemia? Conheça experiências de Porto dos Gaúchos (MT), Jundiaí (SP) e Capivari de Baixo (SC) e saiba mais sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar
Há seis anos, o senhor Manoel Alves Moreira cuida da horta escolar da Escola Municipal Paulo de Almeida Costa. Seu vasto conhecimento sobre como cuidar das plantas não vem dos livros, mas sim de uma vida toda trabalhando em lavoura, desde que migrou da Bahia, sua terra natal, para essa pequena cidade de Porto dos Gaúchos (MT).
É ele quem ensina as 30 crianças de 4 e 5 anos matriculadas na escola a fazer todo o trabalho na horta: arrumar os canteiros, fazer adubo com restos das próprias verduras e frutas, colocar na terra, regar e fazer a colheita. Ele arruma as mudinhas e já as deixa prontas para que as crianças possam plantá-las a cada ano letivo. O senhor Manoel conta:
“As crianças se sentem muito bem em fazer esse trabalho junto da gente, porque elas têm intimidade e inteligência, e a gente tem uma paciência para cuidar delas. Elas sentem o amor que a gente tem por esse trabalho, e a gente ensina as crianças a trabalhar com carinho e com amor. Eu também me sinto bem demais da conta cuidando junto com elas da horta.”
Manoel Alves Moreira
Foi com o pai que Manoel aprendeu a usar as folhas de fumo como inseticida natural para combater e prevenir as pragas nas plantações, colocadas na água para curtir e depois irrigar as plantas. Ele ensina a técnica também para as famílias dos(as) estudantes, por meio de encontros e reuniões com a comunidade.
A horta escolar teve início em 2015 justamente porque, à época, um aluno da comunidade vizinha faleceu após ingerir salada da horta de sua casa que estava pulverizada com agrotóxico – prática muito comum entre os(as) trabalhadores(as) de lavoura da região.
Flávia Ferreira Muniz, coordenadora pedagógica da escola e uma das idealizadoras do projeto, explica:
Com esse acontecimento, ficamos preocupados com as crianças da nossa escola, porque a maioria tem pais que trabalham em fazendas. No passado, tivemos casos de crianças que levaram o copinho de medir veneno pra beber água na escola. Daí surgiu a ideia de construir uma horta na escola, com a ajuda dos pais e da comunidade, para conscientizar as famílias da importância do consumo de alimentos saudáveis sem a adição de agrotóxicos, e que é possível sim cuidar das hortas caseiras sem utilizar venenos.”
Flávia Ferreira Muniz
Merenda escolar saudável
O projeto foi abraçado pela comunidade escolar e tem conseguido atingir o objetivo de mudar o hábito das famílias com relação ao uso de agrotóxicos. Além disso, ao longo dos anos, foi evoluindo, chegando a vincular o trabalho com as plantas com o projeto político pedagógico da escola.
“O conteúdo curricular também é relacionado com a horta. A professora está trabalhando a vogal A, então ela leva os alunos até a horta pra procurar qual alimento com a letra A eles conseguem achar, por exemplo”, explica Flávia.
No total, são cerca de 11 tipos de frutas (coco, maracujá doce, acerola, limão, melancia, banana, araçá) e 15 tipos de verduras, legumes e tubérculos (almeirão, couve, pimenta doce, feijão de corda, abóbora, milho, cenoura, couve, tomate, alface) plantados na horta da escola Paulo de Almeida Costa. A produção é destinada prioritariamente à merenda escolar. Mas, como a horta é grande, parte dela também é doada para a comunidade e outra parte é vendida, garantindo recursos que sustentam os custos de manutenção do espaço.
Durante a pandemia, como a escola estava fechada, os familiares que passavam para pegar as atividades escolares impressas a cada 15 dias também levavam pequenos kits da colheita para casa.
Em Jundiaí, município próximo à capital paulista, a prefeitura tem implementado desde 2019 o Inova na Horta. O projeto tem como objetivo trazer novos conceitos e sabores, e complementar a alimentação nas unidades escolares locais. O trabalho tem como frentes: introduzir as Plantas Alimentícias Não-Convencionais (PANC) e realizar formação sobre as PANC com docentes e as cozinheiras das unidades da rede.
As PANC costumam ser mais resistentes, duradouras, produtivas e nutritivas do que as convencionais. Quando introduzidas nas hortas escolares, elas costumam trazer mais perenidade à plantação.
Foto: arquivo pessoal
Guilherme Reis Ranieri, técnico responsável do projeto Inova na Horta do Departamento de Alimentação e Nutrição da Prefeitura Municipal de Jundiaí, explica a importância de pensar a educação alimentar nutricional do município de forma combinada:
Não adianta só levar uma planta para o prato das crianças, se elas não sabem o que estão comendo. Tampouco adianta só mostrar uma planta na horta e não incorporar no o dia a dia da alimentação delas. Daí a importância dessas frentes de trabalho, de forma que as cozinheiras saibam preparar e utilizar a planta da melhor maneira, e a criança consiga identificar, brincar e estudá-la na horta, e também experimentá-la na merenda.”
Guilherme Reis Ranieri
Durante a pandemia, o trabalho nas hortas escolares ganhou uma nova dimensão e significado, com a possibilidade de utilizá-las como salas de aula à céu aberto. Esse conceito de “desemparedamento” tem estimulado que professores(as) da rede de todas as disciplinas pensem e proponham trabalhos que sejam relacionados à horta e suas plantas.
Além disso, o fato de o trabalho com o plantio ser muito prático e mão na massa, realizado em um espaço aberto em contato com a natureza, traz à horta uma função terapêutica que pode ser muito útil nesse momento de crise sanitária:
A plantação é uma atividade ancestral muito importante pra nós enquanto humanos. Ela pode ser tanto meditativa como realizada em grupos. Ela nos permite trabalhar conceitos como o ciclo da vida, que vai além do simples feijão no algodão, e falar sobre coisas que vão além do meio ambiente. O cuidar das plantas acaba sendo uma forma da criança se expressar e de trabalhar o autocuidado – em relação à alimentação, à higiene, ao amor próprio, às responsabilidades etc. A horta deve ser um espaço de socialização e de trabalho prazeroso.”
No projeto da Emeb Stanislau Gaidzinski Filho para trabalhar a horta escolar, é possível ver o potencial de abordar a questão por diferentes lados, disciplinas e turmas. A professora de Matemática tem trabalhado os cálculos de carboidratos e proteínas dos legumes e verduras; o 1º ano, receitas saudáveis; o 4º e o 5º ano estão focados nas ervas medicinais; em Artes, serão elaborados livrinhos explicativos sobre as plantas e a alimentação escolar; e por aí vai.
A escola fica bem no centro do município de Capivari de Baixo (SC) e por isso as expectativas sobre a construção e manutenção da horta no terreno são altas. A direção escolar e a Secretaria Municipal de Educação esperam aumentar a visibilidade do projeto por causa da localidade, e assim conseguir engajar mais a comunidade escolar para apoiá-lo.
As hortas sempre foram trabalhadas nas escolas de Capivari, mas foi no começo desde ano, na Emeb Vitório Marcon, na zona rural, que um novo projeto foi iniciado em março, mais estruturado.
A iniciativa partiu da professora de Ciências Cristiani Nunes Volpato, que tem uma relação muito antiga com hortas, já se preocupava e estudava o desaparecimento das abelhas na região e ficou ainda mais interessada em tratar do tema na escola com a pandemia:
Foto: arquivo pessoal
Eu via os pais vindo para a escola buscar o kit de alimentação que a prefeitura tem fornecido, e ficava preocupada em relação ao quanto de comida as pessoas estavam tendo acesso nesse período. Eu já tinha feito uma pesquisa com meus(minhas) alunos(as) e eu sei que temos locais para plantar, mas muitas famílias e alunos não o fazem. Então eu acho que precisamos implementar essa cultura do plantio na escola, porque quem planta sempre vai ter o que comer.”
Cristiani Nunes Volpato
Redes sociais como aliadas
O projeto foi abraçado não só pela coordenadora da unidade, Gisele dos Santos Fausto, mas também pela Secretaria Municipal de Educação como um todo. O órgão tem apoiado com os recursos e a agilidade nas burocracias para garantir que o preparo do terreno, a construção do canteiro e as sementes e mudas estivessem disponíveis para os(as) estudantes da escola. O engajamento com o projeto também tem contribuído para manter o vínculo com a escola neste momento de pandemia e atividades remotas.
A primeira colheita já foi feita e gerou produtos que foram utilizados na merenda escolar e distribuídos para a comunidade. O que sobrou ainda foi vendido para a caixinha de formatura da turma do 9º ano. Além da horta, também foi construído um pomar e um orquidário deve sair do papel em pouco tempo.
Foto: arquivo pessoal
A secretária municipal de educação, Lenir Willemann, vê com muitos bons olhos essa iniciativa:
Estamos muito animadas com esse projeto, que esperamos expandir pra todas as unidades da rede. Vemos que além de usar na merenda, podemos comercializar o excedente, que pode ser utilizado pela própria escola para comprar terra especial, fazer mudinhas, aprimorar o sistema de irrigação. O(a) próprio(a) aluno(a) se sente também valorizado(a), porque vê que é possível vender o produto que ele próprio plantou.”
Lenir Willemann
Foto: arquivo pessoal
O que tem potencializado ainda mais o trabalho é o uso das redes sociais para divulgar o trabalho para a comunidade escolar, principalmente com a ajuda do grupo de mobilização do programa Parceria pela Valorização da Educação (PVE), do qual Capivari de Baixo faz parte. Segundo Marinélia Bonelli Fernandes, técnica formadora da Secretaria Municipal de Educação de Capivari de Baixo:
O PVE consegue levar para fora dos muros das escolas esse projeto incrível que estamos fazendo.”
Marinélia Bonelli Fernandes
Para Cristiani, aliando as tecnologias atuais à valorização das técnicas tradicionais, o município tem conseguido resgatar a cultura do plantio e chegar às casas dos(as) alunos(as):
Temos tirado fotos, feito vídeos e publicado nas redes sociais, que, a meu ver, são uma grande ferramenta aliada para conseguir engajar as pessoas no projeto. A horta sempre foi a mesma, cuidada com as mesmas técnicas utilizadas no passado. Eu não tenho dúvida que propagando o nosso trabalho na rede, tendo o mundo digital como aliado, as famílias também passarão a plantar as suas próprias hortas.”
Cristiani Nunes Volpato
Confira galeria de fotos da horta na Emeb Vitório Marcon:
Para Guilherme Ranieri, o trabalho com as hortas escolares não deve ser imposto ou verticalizado. Tampouco pode ser padronizado. Ao contrário, deve levar em consideração as diferentes realidades locais e a forma como a comunidade escolar abraça o projeto. Para que prospere, é fundamental o papel da gestão escolar em garantir recursos (sejam eles financeiros ou de disponibilidade de tempo) para que os(as) educadores(as) possam executar suas propostas da melhor maneira possível.
Cada escola trabalha a horta de forma diferente: em algumas os professores que organizam os canteiros e as crianças só vão para mexer e olhar; em outras eles são totalmente das crianças, que podem cavocar, plantar, retirar as plantas. Há canteiros que são só das cozinheiras, outros que são de apenas uma turma. O(a) docente precisa querer envolver sua turma no projeto, precisa ter intencionalidade. Cada escola vai entender, dentro da sua proposta, tempo e recurso, qual a vocação da horta naquele momento. No final, ela deve facilitar a introdução de conhecimento e a moderação dos saberes com a turma de forma prática.”
Guilherme Ranieri
Violações do direito à alimentação escolar
Infelizmente, iniciativas como as citadas acima ainda não fazem parte da realidade da maioria dos municípios brasileiros. A alimentação escolar saudável é um direito de todos(as) os(as) estudantes no país, mas tem sido violado com as escolas fechadas devido à pandemia de Covid-19.
Dado esse cenário, a Lei 13.987/20 autorizou o uso dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) para a compra e distribuição de kits ou cestas de alimentos aos(às) estudantes. Mas, em muitos municípios, essa distribuição não aconteceu, ou ocorreu de forma muito escassa. Alguns estados optaram por oferecer ticket alimentação.
O documento indica ainda que houve a interrupção das compras de alimentos provenientes da agricultura familiar e da pesca artesanal, que acabaram por perder sua fonte de renda em 2020. De acordo com o relatório, em 2019, grupos de agricultores e pescadores da região receberam mais de R$ 630 mil com o Pnae.
Instituído em 2009 pela Lei n° 11.947, o Pnae é o principal responsável por garantir a segurança alimentar e nutricional dos(as) estudantes brasileiros(as). Ele repassa cerca de R$ 4 bilhões aos 27 estados e 5.570 municípios brasileiros (que devem complementar esse valor com seus próprios recursos), permitindo o atendimento de cerca de 41 milhões de estudantes.
O Pnae também estipula que 30% do valor repassado seja destinado à compra de alimentos vindos da agricultura familiar, trazendo geração de renda e o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades locais.
Além de denunciar a má qualidade e irregularidade na distribuição das cestas, a falta de participação social e prestação de contas, e o não atendimento dos estudantes, o relatório da Plataforma Dhesca recomenda que seja ampliado o orçamento do Pnae, que seja retomada as compras da agricultura familiar e que sejam revisadas a composição das cestas, para garantir alimentos frescos e minimamente processados.