Opinião

Aos 70 anos, a lição dos gatos

por Samyra Crespo –

Eu pensei que sabia muito de gatos.

Afinal, eu tinha cerca de trinta anos quando meu filho mais novo trouxe uma gatinha vira-latas para casa. Demos a ela o nome de Josefina e não demorou três meses ela deu cria, e aí mais dois gatinhos passaram a habitar a casa onde eu tentava viver uma doce vida de classe média, com minha dose generosa de felicidade garantida: tinha dinheiro para alimentar meus filhos e comprar ração, fazer visitas ao veterinário, comprar florais etc.

Eu já morava no Rio e daí em diante muitos gatos passaram por mim e pela minha estrutura familiar. Josefina era cardíaca, morreu aos 10 anos bem na minha frente.

Riobaldo, um siamês que veio a tiracolo de um segundo marido, caiu da janela tentando pegar uma pomba. Borg, rajado, pelo curto brasileiro morreu com 14 anos. Passou seus últimos dias numa laje de comunidade, levado por uma empregada da casa após a morte de meu filho mais novo. Ele reagiu à morte do meu filho, seu dono, ficando bulimico. Parecia tão deprimido que não recusei a oferta da minha empregada de levá-lo para um outro ambiente. Ela o adorava.

Um tempo depois, Miúda, uma siamesa misturada com vira-latas. Fui buscá-la em Santa Tereza na casa da minha amiga Renata Bernardes, na época uma colecionadora de bichanos.

Renata era a fornecedora oficial de gatos de todas as minhas amigas.

Quando decidi trabalhar em Brasília em 2008, minha irmã sequestrou Miúda e Eusébio, seu filhote. Ambos permaneceram felizes com ela até morrerem com 13 e 16 anos respectivamente.

A primeira grande lição adotando pets é que de antemão sabemos – se houver um curso natural – que nossos animais de estimação morrerão antes de nós. Mas cada um que parte é um luto, e nenhum substitui o outro.

Talvez haja um céu de gatos, um plano astral só pra eles…

Adotei o Ice logo que voltei de Brasília, gato já adulto, juntamente com Catarina, em um pet-shop. Ice, branquinho como a neve, meigo, um gato adorável, morreu atacado por cães. Um evento trágico que até hoje provoca um nó na minha garganta.

Catarina fugiu num dia de chuva, pulando a janela de uma altura de dois andares do meu prédio.

Saí com lanterna na rua, me ajoelhei para olhar em baixo dos carros, ofereci recompensa e nada.

Na época, trabalhando no Jardim Botânico eu tinha um motorista que usou a seguinte frase para me consolar: ‘Doutora, ela escolheu a liberdade”. Essa sentença teve um inesperado efeito sobre mim. Explico adiante.
Fiquei enlutada por um tempo, até que alguém me falou de um gatinho laranja que se destacava numa ninhada recente de cinco filhotes numa casa de família pobre.

Há muito eu queria um gato amarelo e quando vi a foto, foi amor à primeira piscada.

Gato pisca para te seduzir, então – Benjamim (meu bem querer) me seduziu já pela fotografia no celular.
Um rajado simétrico, laranja e um olhar inquiridor, inteligente.

Então, vocês notaram pela lista, que já tive direta ou indiretamente muitos gatos.

E as razões para tê-los foram muitas: por considerá-los esteticamente uma perfeição, por sua Independência, e também por toda a mitologia que atribui a estes felinos características únicas, algumas até sobrenaturais.

Quem não gosta de um pouco de magia? Da ideia de que gato vê espírito, protege o dono, equilibra a energia da casa?
Na minha infância tinha um que saltou dos gibis para a animação das telas: o gato Félix e sua bolsinha de recurso mágicos. Eu era fascinada por ele.

Bruxas têm gatos, escritores e poetas também. Não é coisa de mulher maluca ou homem afeminado como muitas vezes ouvi de gente obtusa ou machista.

De valentões como Hemingway, a introspectivos como Borges, a imaginativos como Guimarães Rosa, a abençoados com o dom do lirismo como Gullar e Neruda, a espirituais como Dalai Lama, dezenas de pessoas que amo e admiro criaram gatos, escreveram sobre eles – e o seu fascínio.

Pois bem, eis que as minhas duas últimas aquisições, cada uma com sua especificidade, Maruscka e Benjamim, estão literalmente ‘bagunçando meu coreto’ e revolucionando meu entendimento sobre a frase, talvez a mais famosa de Antoine Saint Éxupery: ‘Você se torna eternamente responsável por quem você cativa’.

No meu caso, não sendo uma raposa, muito menos uma rosa ou um pequeno príncipe, quero me rebelar contra essa ‘armadilha ético-afetiva’.

Essa frase é F…a.

Nunca caí de um avião nem me perdi no deserto.

Mas estou perdida sim, enredada nos meus próprios pensamentos e sentimentos com relação a estes dois gatos, talvez os últimos da minha breve existência como humana.

Continuo amanhã.

Contarei como Maruscka, preta, fininha, resgatada numa noite de tempestade, apavorada e subnutrida, se tornou da noite para o dia uma deusa indiana num gatil particular.

Enredo de filme.

E de como meu Benjamim está desmoronando algumas das minhas mais caras convicções sobre liberdade e autodeterminação dos gatos.

Amanhã.

Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.