por Samyra Crespo –
Alimento é energia: comemos para produzi-la e uma analogia antiga pode ser feita com a lembrança da máquina a vapor, ‘alimentada’ com lenha ou carvão para movimentar-se.
Desde Claude Levistrauss, antropólogo francês que influenciou várias gerações de estudiosos há quase um século, sabemos que ‘O cru e o cozido’ representam um salto evolutivo na cultura humana. Como mediador dessa transição, o fogo e o nascimento do paladar que se afasta da natureza e se aproxima do que a mente é capaz de criar.
Que outro animal cozinha seus alimentos?
O alimento também pode ser compreendido técnica e cientificamente como nutrientes, aqueles mais adequados para melhorar o funcionamento de nossas células e o desempenho do nosso corpo.
Há toda uma doutrina da ‘dieta balanceada’ e do ‘nutricionismo’ vigorando hoje em dia.
Esta ciência dos alimentos promete longevidade, performance, saúde. E nós, aos poucos, vamos nos familiarizando com os termos desnaturalizados dos carboidratos, sais minerais, sódio, açúcares, lipidios, glissidios, e um infinito novo glossário.
Vá a um mercado ‘verde’ e se depare com prateleiras e prateleiras de ‘alimentos naturais’ ou ‘alimentos suplementares’ – uma vida inteira para entender e talvez se beneficiar dessa nova cultura alimentícia.
A terceira onda contemporânea dessa nossa sagrada alimentação vem com a glamurização da comida, do alimento: é a doutrina ‘gourmet’ – com chefes e chefas cheios de autoridade sobre como refinar sabores, adotar novas estéticas, apropriar-se de culturas as mais diversas, no espaço de uma cozinha, um restaurante especial, uma nova arte.
Comer a comida gourmet é como presentear-se.
Semelhante a ir a um museu, ópera ou desfile de modas.
Do visual ao gustativo, do gustativo ao mental, o prazer refinado. Para poucos e caro.
Multiplicam-se na TV os programas sobre cozinhar – cada vez mais sofisticadamente. Não raro, os chefes viajam para lugares paradisíacos, vinícolas na Califórnia, olivais na Grécia, os sabores exóticos dos mercados asiáticos: a comida com histórias.
Outro dia, pasmem, vi um chef – num desses programas – enfeitar sem constrangimento, um prato com fios de ouro…
A contraparte (ou paradoxo) dessas novas culturas alimentares, cada uma com sua delícia e sua agonia, está em um fato ambiental- sociológico de impacto: afinal, estamos em fase de escassez ou de abundância de alimentos no Planeta?
Dados divulgados pela FAO e pela ONU atestam que mais de um terço da população mundial passa fome ou recebe menos nutrientes que o necessário para o seu desenvolvimento.
Não se fala em escassez – não ainda. Mas de má distribuição de renda e da capacidade do ambiente natural produzir as safras que determinadas populações necessitam (África sub-sahariana, por exemplo).
O fator climático agravará nos próximos anos essa já desequilibrada produção de alimentos no mundo.
Mesmo no Brasil onde estamos batendo recordes em nossas safras agrícolas – soja e milho são exportados, não alimentam parte de nossa população carente. Há bolsões de fome no país.
Assim, seguimos. Ao lado da da escassez e da fome de muitos, temos a promoção da cultura refinada ou saudável de ‘comer bem’.
Os supermercados das cidades grandes, com ofertas abundantes de opções de alimento, para quem pode pagar, infla nossa ilusão de que há comida para todos.
O desperdício e o impacto ambiental desse ‘modo de alimentação urbano-industrial’ são ainda menosprezados em nossa cultura alimentar moderna.
Come-se com os olhos, com nossa bagagem cultural e emocional, além do estômago.
Eu mesma gosto de comer, de cozinhar e de descobrir novas culturas alimentares.
Pergunto a mim mesma, e a quem se identificar com meu escrito, o que fazer para conciliar o ânimo do estômago e da cultura, sem predar a natureza da qual somos dependentes.
Um amigo me enviou recentemente uma foto de uma ‘fazenda urbana’: um gigantesco prédio de alfaces cultivadas sem solo, numa espécie de estufa vertical.
Nosso futuro? Já existem. Já é parte do nosso agora.
Minha mãe, até ontem plantava tomates no jardim e meu ex marido mantém uma horta de temperos no quintal.
Vejo os passarinhos comerem as pimentas maduras e suspiro.
A complexidade do mundo cabe no meu estômago.
* frase famosa de uma música da banda Titãs.
Samyra Crespo é cientista social, ambientalista e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins e coordenou durante 20 anos o estudo “O que os Brasileiros pensam do Meio Ambiente”. Foi vice-presidente do Conselho do Greenpeace de 2006-2008.