A cidade onde moro não é um paraíso. Mas, se lá não fizesse tanto frio e houvesse praia, estaria perto disso. Ao norte de Boston, Cambridge tem apenas cem mil habitantes, é cercada de jardins; suas calçadas são largas – carro não faz a menor falta. Não há violência nem atropelamentos. Nesse ambiente, Harvard e MIT atraem gente inovadora de todo o mundo, disposta a inventar ou a reinventar alguma coisa: do tratamento do câncer ao comércio eletrônico, passando pela bateria para mover carros elétricos.
Por causa da inovação, o desemprego quase não é assunto. Grandes empresas (como o Google) montaram ali centros de pesquisas. Se aquela paz cansar, rapidamente se chega a Nova York de trem – ou se pode ir caminhando por Boston.
Fiquei seis meses longe de São Paulo, que, na comparação, remete à imagem do inferno urbano. Um olhar um pouco estrangeiro nos faz ver melhor.
Na noite em que cheguei a São Paulo, um jovem foi atropelado perto da minha casa por um Land Rover. Todas as semanas, via notícias sobre vítimas nos bairros nobres, de professores a publicitários. Jornais falavam do recorde de assaltos a caixas eletrônicos e até de arrastões promovidos por crianças.
A informação que melhor define o ambiente estressante da cidade está numa pesquisa da Unesp: 40% dos seus habitantes sofrem de distúrbios do sono. A insônia – fruto da ansiedade, da depressão e de outras fobias urbanas – não escolhe gênero nem classe social.
Apesar de tudo, tenho a certeza de que meu inferno é mais interessante do que o paraíso dos outros.
O encantador da cidade é a emoção que se encontra na resistência, no estilo guerra de guerrilha contra a barbárie.
Nestes dias em São Paulo, conheci um ex-morador de rua (Robson Mendonça) que entrega livros pelo centro da cidade pedalando uma biblioteca, batizada de “bicicloteca”. Conversei com Antônio Miranda, o motorista de táxi e fotógrafo amador que criou a Bibliotáxi, citada como exemplo no site da Associação Americana de Bibliotecas. Descobri motoboys que passaram a entregar livros pela cidade.
Foi lançado, na cidade, um programa de inovação educacional a ser desenvolvido na Universidade Stanford (Califórnia) para ajudar a repensar o modo de ensinar nas escolas públicas. Um dos envolvidos no projeto é Paulo Blikstein, ex-aluno da Poli-USP, que acaba de receber um importante prêmio norte-americano de estímulo à pesquisa.
No mesmo dia em que era lançado o programa, saía a Plataforma de Cidades Sustentáveis, elaborada pelo Movimento Nossa São Paulo e pelo Instituto Ethos. Com exemplos internacionais, é um roteiro do que é necessário para uma comunidade ser civilizada. A ideia é realizar, a partir de São Paulo, uma ação nacional.
No dia 26, o Nossa São Paulo decidiu apoiar um aplicativo batizado de Cidade Mais Feliz, para estimular a população a manifestar-se sobre os problemas que testemunha.
Jovens da Casa de Cultura Digital levantaram recursos para o projeto de um ônibus-hacker, que vai visitar bairros e cidades para ensinar como se extraem e se analisam números dos orçamentos públicos, às vezes camuflados pelos governantes.
Abalados com os atropelamentos, jovens de classe média saíram às ruas, com uma linguagem mais simples que a das autoridades, para tentar civilizar os motoristas. Graças a jovens de classe média, no final da década de 1990, a cidade mobilizou-se pelo desarmamento – e obteve bons resultados. No dia 25, segundo anúncio oficial, a taxa de homicídios na cidade, nos sete primeiros meses do ano, comparados ao mesmo período do ano anterior, caiu 26%.
Longe dos bairros nobres, em Heliópolis desenvolveram uma experiência para se comunicarem com outros jovens a fim de evitar o abuso do álcool. Os resultados, medidos por pesquisadores independentes, fizeram com que o projeto servisse de inspiração para um plano de saúde, anunciado no início do mês, para atingir milhares de escolas públicas.
Está prevista para o dia 29 uma manifestação contra a violência, promovida por moradores do Morumbi, onde existem desconfianças em relação à favela de Paraisópolis, localizada no meio no bairro. Gilson Rodrigues, um jovem líder daquela comunidade está aproveitando o dia para propor que se construam pontes de diálogo entre os moradores do bairro. Gilson batalha há anos para criar uma sala de concertos.
Seria capaz de escrever páginas sobre as pequenas gentilezas urbanas que encontrei nessas semanas. Não são suficientes para acabar com o inferno urbano, mas são um desfile de emoções. Por isso, meu inferno é mais interessante do que o paraíso dos outros. E, tentando chegar ao aeroporto, começo a sentir saudades.
* Gilberto Dimenstein é colunista e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo, comentarista da rádio CBN, e fundador da Associação Cidade Escola Aprendiz.
** Publicado originalmente no Portal Aprendiz.