La Paz, Bolívia, 24/10/2011 – A crescente pressão social forçou o presidente da Bolívia, Evo Morales, a suspender a construção de uma estrada que atravessaria território protegido e rico em recursos naturais, mas o anúncio apenas abre espaço para uma negociação técnica e legal com os indígenas que lideram o protesto. Morales recuperou sua conhecida fase “governar ouvindo o povo” e anunciou a suspensão definitiva do projeto viário diante da presença às partes da sede do governo, em La Paz, de centenas de crianças, homens e mulheres habitantes do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), reunidos em vigília após terem caminhado 600 quilômetros em 66 dias.
Com férrea decisão até o dia 21, o mandatário de origem indígena havia impulsionado pessoalmente um plano para integrar por estrada os departamentos de Cochabamba, centro do país, e Beni, no norte, com apoio de um crédito de US$ 332 milhões concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do Brasil. O custo da obra, que estaria a cargo da também brasileira construtora OAS, é de US$ 415 milhões. O restante do investimento seria do governo boliviano.
A pacífica marcha indígena iniciada em 15 de agosto em Trinidad, capital de Beni, foi violentamente reprimida pela polícia no dia 25 de setembro, quando já contava com grande adesão popular, que no dia 19 se traduziu em uma emotiva boas-vindas em La Paz. A chegada da marcha, que mobilizou milhares de manifestantes até a sede do governo, transmitiu uma mensagem implícita de desaprovação ao governo de Morales, segundo analistas.
O presidente já havia recebido outro duro golpe no dia 16, quando 45% do eleitorado das primeiras eleições judiciais do país anularam intencionalmente seu voto, segundo a pesquisa de boca de urna feita pela rede de televisão ATB. A contagem oficial ainda não terminou. Apenas 35% dos eleitores teriam apoiado os candidatos a magistrados que foram pré-selecionados pelos representantes afins ao governo na Assembleia Legislativa Plurinacional, que são maioria.
“Queremos deixar encerrada a questão do Tipnis”, disse Morales, que em uma entrevista com líderes da marcha indígena, realizada no dia 21, após várias tentativas frustradas, propôs apresentar uma lei de “intangibilidade” que estabeleça que nenhuma estrada cruze por esse parque e território indígena. Contudo, essa iniciativa não foi aceita pelos indígenas.
O porta-voz do Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Qullasuyu, David Crispin, explicou à IPS que declarar “intangível” o território indígena em conflito significa privar seus habitantes do uso de seus recursos naturais. Diante dessa situação, anunciou uma fase de amplo debate com o governo. Crispin qualificou a ideia de Morales como um ato de “vingança”, porque a restrição ao uso de recursos naturais significar tirar seus meios de vida. Patricia Ilimuri, presidente da Regional de Mulheres Amazônicas, que reúne os povos leco, mosetén, tacana e esse eja, afirmou à IPS que não deixarão La Paz “enquanto não forem atendidos todos os pontos da demanda”.
Os mil homens, mulheres e crianças de diferentes povos de zonas tropicais, que chegaram a La Paz apoiados por aborígines de regiões de vales e altiplanas, estão abrigados na universidade estatal. Autoridades e funcionários municipais da capital, organizações sociais e outros cidadãos recolhem doações e alimentos para atendê-los, enquanto outros grupos dos que se dirigiram a La Paz permanecem nos arredores do Palácio Quemado, sede da Presidência, à espera de respostas do governo.
A marcha indígena, a oitava desde 1990, chegou em meio a uma campanha de descrédito incentivada pelo governo, mas se transformou na interpelação pública ao presidente Morales, que se declarara defensor da Mãe Terra e dos povos originários. A Constituição aprovada por iniciativa do próprio Morales lhes reconhece direitos para decidir nas terras comunitárias e de origem.
Em uma tentativa para recuperar a adesão popular, o presidente também prometeu incluir na lei de proteção ao Tipnis um artigo proibindo sua ocupação por estranhos, bem como o despejo imediato dos que a invadirem. A mensagem é dirigida aos grupos plantadores de coca que expandem suas atividades em parques nacionais, longe das áreas onde é permitido plantá-la. Morales continua sendo o líder de seis milhões de organizações de produtores de coca na área central do departamento de Cochabamba.
Crispin informou que durante as negociações se exigirá respeito aos 22 territórios indígenas distribuídos em vales, planícies e altiplanos, porque em todas essas zonas subsiste o perigo da intenção de colonos de se apoderarem de áreas ricas em recursos naturais. A petição de 16 pontos entregue pelos manifestantes compreende, além da proibição da construção da estrada através do Tipnis, uma demanda de respeito às Terras Comunitárias de Origem (TCO) na nova legislação agrária. Uma das maiores preocupações dos povos indígenas é a aplicação do direito à consulta mediante uma lei, condição que não foi cumprida na preparação do questionado projeto viário na região protegida. Envolverde/IPS