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Estocada dos Estados Unidos não fere apenas a Unesco

Se Washington não mudar de posição, a África e outras regiões afetadas por guerras sofrerão as consequências do corte de fundos. Foto: Mantoe Phakathi/IPS

Paris, França, 9/11/2011 – A decisão dos Estados Unidos de suspender sua contribuição para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) afetará as populações beneficiárias do trabalho especializado desta agência, alertam delegados dos países-membros. Washington tomou a decisão depois que os membros da Unesco incorporaram a Palestina com todos os direitos, no dia 31 de outubro.

“A retenção de cotas e outras contribuições econômicas – obrigada por duas leis norte-americanas – enfraquecerá a Unesco e afetará sua capacidade para construir sociedades abertas e livres”, disse a diretora-geral da organização, Irina Bokova. “Os fundos norte-americanos são usados para criar e manter meios de comunicação livres e competitivos no Iraque, Egito e na Tunísia. No Afeganistão, sua contribuição ajuda a ensinar a ler e escrever milhares de oficiais da polícia”, acrescentou.

Os programas de alfabetização em áreas de conflito “desenvolvem a capacidade crítica das pessoas, o que lhes dá confiança para lutar contra o extremismo violento”, afirmou Bokova, lembrando que a Unesco também capacita jornalistas na cobertura veraz de eleições, “para manter o espírito democrático da Primavera Árabe”.

Washington anunciou que reterá US$ 60 milhões que previa pagar ainda este ano, pois duas leis vigentes proíbem colaborar com a Organização das Nações Unidas (ONU) ou qualquer de suas agências que aceitarem a Palestina como Estado independente. Bokova exortou o “governo, o Congresso e o povo norte-americano a encontrarem a forma de continuar apoiando a Unesco nestes tempos turbulentos”.

A solicitação da Palestina gerou mal-estar na 36ª Sessão da Conferência Geral, um dos dois órgãos de decisão da Unesco, que começou no dia 25 de outubro e terminará amanhã. O plenário recebeu uma incomum atenção da mídia e maiores medidas de segurança do que o habitual devido à petição palestina e à pressão dos Estados Unidos, entre outros países, para que fosse rejeitada.

No plenário da semana passada, 107 países votaram a favor da solicitação palestina, 14 foram contra e 52 se abstiveram. Surpreendeu o “sim” da França, e o esmagador apoio da África resumido na resposta do Sudão: “Sim, agora sim”. Os Estados da América Latina e da Ásia também foram a favor, além dos esperados apoios de China, Índia e países árabes, incluído o novo governo da Líbia.

A votação foi seguida de forte e prolongado aplauso por parte de muitos dos presentes. Numerosos países argumentaram seu voto com declarações destinadas, sobretudo, a explicar sua posição perante seus próprios públicos domésticos. A integração da Palestina é “prematura”, segundo os Estados Unidos, por não haver acordo sobre a solução de dois Estados. Alguns dos países que votaram contra ou se abstiveram justificaram sua decisão alegando que o Conselho de Segurança da ONU ainda estuda a solicitação inicial.

O ocorrido na Unesco pode ter efeitos positivos nessa petição apresentada pelo presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, à Assembleia Geral da ONU no dia 23 de setembro. Mas os Estados Unidos têm direito de veto nesse órgão e já disse que o usaria. Se Washington não mudar sua posição, África e outras regiões afetadas por guerras sofrerão as consequências da redução de fundos.

A Unesco colabora com escolas móveis em países como Quênia para chegar às populações nômades. Também promove a igualdade de gênero na educação em países onde a discriminação contra as mulheres é importante. “É responsabilidade dos países-membros garantir que a Unesco não sofra de forma excessiva”, disse Bokova, que priorizou a educação de meninas e mulheres desde que assumiu como diretora-geral há dois anos. “Penso nas milhares de meninas e mulheres do Afeganistão, da África e de outras partes do mundo que aprenderam a escrever com ajuda da Unesco”, afirmou.

Membros da delegação palestina esperam que os Estados Unidos mudem de atitude. Esse país é o maior contribuinte da Unesco, com US$ 80 milhões por ano, 22% de seu orçamento. Em seguida está o Japão, que se absteve de votar. Cada membro tem um voto, independente de sua contribuição econômica.

O chanceler palestino, Riyad al-Maliki, que fez um apaixonado discurso antes da votação, disse depois que sua delegação estava preocupada com a questão financeira. Mas afirmou que a Unesco trabalhou para continuar com sua tarefa quando os Estados Unidos recorreram ao mesmo método de pressão, entre 1984 e 2003.

Esta votação nada tem a ver com a solicitação de reconhecimento do Estado palestino apresentada na Assembleia Geral, acrescentou o chanceler palestino. “Falamos de áreas específicas, educação, ciência e cultura, e queremos desempenhar um papel importante nelas”, disse aos jornalistas. Há 22 anos a Palestina tenta entrar na Unesco, enquanto a petição à ONU foi apresentada agora pela primeira vez, acrescentou.

Os representantes favoráveis à causa palestina ficaram satisfeitos com o resultado da votação e preocupados pelo impacto econômico que terá na Unesco. O representante de Malta, Ray Bondin, afirmou que a lei norte-americana foi criada para combater a Organização para a Libertação da Palestina e não deveria ser aplicada aos palestinos na atualidade.

“É uma nação. É Palestina. Tem direito de estar aqui como qualquer um de nós. Que direito temos de dizer-lhe que não? O presidente Abbas se esforçou muito para tentar acalmar as águas e instaurar a paz na região. Não é fácil para um povo que sofreu tantos anos”, disse Bondin. “Apesar das consequências, a Palestina deve ser reconhecida pelo que é, uma nação separada, e permitir-lhe negociar como tal”, prosseguiu.

A Unesco se dedica à cultura e ao patrimônio, não a assuntos políticos, destacou Bondin. O resultado da votação “é adequado para esta agência. É um passo que ficará para a história”, acrescentou.

Devíamos a integração à Palestina, embora se traduza em medidas punitivas para a África, afirmou o representante de Gâmbia, Bojang Sukai. “É o correto e creio que a Unesco deve se felicitar por oferecer uma plataforma para o reconhecimento da Palestina. É hora de os palestinos poderem decidir e terem uma oportunidade de desempenhar seu papel no mundo”, disse Sukai. Envolverde/IPS