Porto Príncipe, Haiti, 13/1/2012 – Pouco mudou para Dieulia St. Juste nos últimos dois anos, quando seu marido foi um dos cerca de 230 mil mortos no Haiti em razão do terremoto de 12 de janeiro de 2010, e ela e seus três filhos ficaram sem teto. Esta vendedora ambulante de 38 anos ainda vive em um acampamento junto ao desmoronado Palácio Nacional de Porto Príncipe.
“Dois anos depois do terremoto e ainda é difícil falar sobre nossas condições de vida”, afirmou. “Não temos uma vida boa. Nesta barraca vivemos como cães. Ninguém me ajuda a cuidar dos meus filhos. Todo dia tenho que caminhar pelas ruas vendendo cosméticos, e espero poder mantê-los dessa maneira”, acrescentou. Ao completar ontem o segundo aniversário do terremoto que atingiu quase três milhões de pessoas neste que já era o país mais pobre da América, St. Juste não se mostra otimista. “As coisas estão piorando para quem vive nos acampamentos. Se eu pudesse iria embora daqui”, disse.
Das tendas para os abrigos
Dos 1,3 milhão de pessoas que há um ano estavam refugiadas em cerca de 1.300 acampamentos, agora restam aproximadamente 500 mil em 750 acampamentos. Entretanto, segundo pesquisas da Haiti Grassroots Watch e outras organizações, a maioria dos que abandonaram os acampamentos está de volta em assentamentos insalubres. Muitos moram em casas danificadas durante o terremoto e apontadas como “vermelhas” pelos engenheiros, o que significa que deveriam ser destruídas.
Outros se instalaram em precários morros, em abrigos improvisados, em casebres de concreto mal construídos, ou em um dos aproximadamente cem mil “abrigos transitórios”, que durariam três anos e seriam erguidos com cerca de US$ 200 milhões de assistência. Muitos outros milhões custaram manter os acampamentos. Gastou-se relativamente pouco em reconstruções e moradias novas, embora alguns projetos pequenos – 400 casas aqui, mil ali – estejam atualmente em obras.
Segundo a Fundação das Nações Unidas, desde o terremoto a Organização das Nações Unidas (ONU) e seus sócios forneceram para 1,5 milhão de pessoas abrigo, água limpa e acesso a latrinas, e a 4,3 milhões de pessoas foi dada assistência alimentar. Também foram doados 1,5 milhão de equipamentos de emergência e saúde reprodutiva e a 750 mil crianças foi dada educação e material escolar gratuito. Além disso, apoiaram a remoção de mais da metade dos escombros.
Um exame da consultoria independente GiveWell concluiu que foram arrecadados ou comprometidos US$ 5,2 bilhões, e que cerca de US$ 1,6 milhão já foram desembolsados em esforços de alívio e recuperação. Porém, Renel Sanon, organizador e secretário-executivo da Force for Action and Reflection on the Housing Issue (Frakka, em creole), disse que a situação socioeconômica da maioria dos afetados na realidade piorou. “Não houve nenhuma melhora em suas condições de vida, apesar das quantias exorbitantes gastas”, acrescentou, lembrando que foram criadas mais favelas na capital.
Antonal Mortiné, secretário-executivo da Plataforma para a Defesa dos Direitos Humanos, que reúne várias organizações haitianas, disse que o governo e seus sócios violaram sistematicamente o direito à moradia. “As vítimas são totalmente excluídas. Quando o Estado faz seus planos, não os leva em conta nunca”, ressaltou.
Marie Felicia Felix, uma deficiente de 41 anos, vive em um “abrigo temporário” da Cruz Vermelha/Meia Lua Vermelha, em um acampamento instalado no antigo aeroporto militar Airstrip Camp. Ela perdeu uma perna no terremoto. “Vivo melhor aqui do que quando estava em uma barraca no Acampamento Jean-Marie Vincent. Aqui me sinto bem. Não me preocupo quando chove”, contou. “Naturalmente, não temos muita infraestrutura, como eletricidade ou água, embora, de todo modo, seja melhor do que antes. Mas não se vê nenhum esforço real por parte das autoridades para realmente reconstruir o país”, ressaltou.
“Os deficientes são esquecidos quando são tomadas as grandes decisões. Nenhum de nossos líderes jamais veio nos visitar”, disse Marie Felice. A quantidade de deficientes que o terremoto deixou varia segundo os informes, mas alguns indicam que foram feitas quatro mil amputações nos dias posteriores ao desastre. A Handicap International informou que colocou cerca de 1.500 aparelhos ortopédicos e distribuiu 5.600 implementos para ajudar a mobilidade, como bengalas. A entidade destacou que alguns haitianos deficientes ainda não receberam as próteses e as terapias de reabilitação necessárias.
Epidemia de cólera sem fim à vista
O problema sanitário mais grave é a persistente epidemia de cólera, que surgiu em outubro de 2010 e é a pior da história moderna. “Em meados de dezembro de 2011 registramos 525 mil casos e sete mil mortes no Haiti, e 21 mil casos e 363 mortes na República Dominicana”, com a qual o Haiti divide a Ilha La Espanhola, informou no dia 6 Jon Andrus, diretor-adjunto da Organização Pan-Americana de Saúde, em uma entrevista coletiva da ONU. Ele enfatizou que há 200 novos casos de cólera por dia.
Segundo o Center for Economic Policy and Research, com sede em Washington, numerosos estudos científicos encontraram uma clara ligação entre a cepa do cólera que afeta o Haiti e os capacetes azuis postados em uma base militar em Mirebalais, perto do Rio Meille, onde teve início o foco da doença.
Rastreando o dinheiro
Embora tenham sido prometidos milhares de milhões de dólares para as tarefas de alívio e reconstrução, um exame divulgado no começo deste mês concluiu que apenas 1% chegou ao governo haitiano. O antropólogo Jean-Yves Blot, vice-decano da Faculdade de Etnologia da Universidade do Estado do Haiti e colaborador no livro Tectonic Shifts-Haiti since the Earthquake ( Mudanças tectônicas: Haiti desde o terremoto”, Kumarian Press, 2012), condenou o que é visto como um fracasso do Estado haitiano.
“Pensamos que o problema está em nós, que não sabemos como lidar, que temos desafios de governança. Acabo de visitar uma comunidade vudu que existe há 220 anos. Isso mostra que os haitianos sabem com lidar com as coisas. Nós temos muita perícia no manejo e na governança, mas a propaganda nos faz crer que precisamos de especialistas estrangeiros”, afirmou. “Precisamos encontrar uma resposta para esta crise. Somos nós que precisamos investigar, organizar e encontrar uma solução”, ressaltou. Envolverde/IPS
* Jane Regan e Sylvestre Fils Dorcilus são integrantes da Haiti Grassroots Watch (HGW). A IPS se orgulha de ter trabalhado com a HGW desde o terremoto para reproduzir suas pesquisas sobre como foram gastos os fundos destinados à reconstrução e à recuperação, bem como sobre temas de transparência e responsabilidade das organizações não governamentais e da comunidade internacional.
** Com a colaboração de Mathilde Bagnares desde a ONU.