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Agora os mortos de Bagdá são gays e lésbicas

Cidade Sadr se converteu em um inferno para os homossexuais e os seguidores da tribo urbana emo. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

Bagdá, Iraque, 19/3/2012 – Cadáveres com a cabeça esmagada aparecem nas ruas da capital do Iraque como restos de um naufrágio abandonados na praia. Para os homossexuais e os seguidores da tribo urbana emo, desafiar os rígidos cânones que marcam a ortodoxia xiita imperante se paga com a vida. “Foi obrigado a morder a beirada de um banco antes de ter a cabeça arrebentada por um bloco de cimento. Se chamava Saif Asmar e era meu amigo. Amanhã pode ser eu”. Ruby (nome fictício) se debate entre a raiva e o choro enquanto segura a foto de um jovem mal reconhecível após o brutal assassinato.

Desde o começo deste ano, esquadrões da morte realizam uma campanha de ataques contra jovens homossexuais e emos. “Usar correntes, piercing no nariz ou tatuagem é sinônimo de ser homossexual, adorar o diabo, ou as duas coisas”, disse à IPS este jovem que deixou sua casa há um mês após ser ameaçado. Ruby nota um aumento considerável dos ataques desde 6 de fevereiro. “Naquele dia mataram Ahmad Arusa em Cidade Sadr e outros quatro em Geyara”, ambos bairros xiitas de Bagdá. “Já são mais de 80 os assassinatos desde então”, denunciou.

Em um comunicado divulgado em janeiro, o Ministério do Interior qualificou os emos de grupo “satânico” e disse que um grupo especial da polícia cuidaria de “combater esse fenômeno”. Hoje, os mortos por esmagamento em Cidade Sadr, no leste da capital, se somam aos queimados com ácido em Jadimiya, no noroeste. Além do método empregado, quase todas as vítimas viram seus nomes em uma das listas que costumam amanhecer nos muros das ruas de Bagdá.

Ruby acusa diretamente o Exército Medhi – liderado pelo clérigo e líder político Muqtada al-Sadr – e denúncia a impunidade que cerca estes crimes. “O nosso é um governo-milícia”, queixou-se este jovem na clandestinidade. “A única solução é o Ocidente em conjunto pressionar Bagdá para que acabe com este pesadelo”. A vice-presidente da Organização para a Libertação das Mulheres no Iraque, Dalal Jumma, lamenta pela falta de separação entre Estado e religião no Iraque que surgiu após a invasão militar dos Estados Unidos em 2003, que pôs fim ao regime de Saddam Hussein (1979-2003).

“As milícias colocam listas nas paredes com nomes e sobrenomes de supostos homossexuais, aos quais acusam de satanismo por participação no martírio do imã Hussein”, neto de Maomé morto no Século 6, explicou Juma, da sede da organização, no bairro de Karrada, sudeste da capital.

A IPS teve acesso a uma dessas relações, supostamente encontrada em Cidade Sadr. Trata-se de uma lista com nomes de 33 pessoas, localizadas pelos números dos quarteirões em que residem e precedida de uma advertência escrita com inúmeros erros de ortografia: “Se não assumirem uma atitude decente em quatro dias, o castigo de Deus se dará pela mão dos mujahidines” (guerreiros islâmicos), pode-se ler entre os desenhos de duas pistolas.

Do escritório do partido de Muqtada al-Sadr, o Bloco Sadr, o líder religioso e político local Brahim Jawary desmentiu qualquer implicação de seu grupo nos assassinatos. Tanto esses crimes como “toda conduta imoral e contrária à religião” serão investigados devidamente, afirmou.

Não foi uma lista no muro, mas um e-mail que levou a jovem Madi a fugir de casa. Hoje esconde tanto seu paradeiro como seu nome real. “Ameaçaram contar à minha família que sou lésbica caso não deixasse imediatamente o país”, contou esta jovem de 26 anos em uma entrevista em um lugar indeterminado de Bagdá. O medo de Madi não é infundado. “Muitas lésbicas morrem no Iraque pelas mãos de seus irmãos mais velhos. É mais um crime de honra, espécie de assunto doméstico que o governo nunca investiga”, disse.

A organização Iraquianos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgênero), com sede em Londres, estima que mais de 720 pessoas foram mortas pelas milícias extremistas no Iraque os últimos seis anos. Madi garante ter perdido muitos amigos próximos e não vacila em apontar os culpados. “As milícias de Muqtada al-Sadr e as forças de segurança são as mais agressivas contra nós, sobretudo depois de uma fatua (lei islamica) emitida há quatro anos que especificava, literalmente, que os homossexuais deveriam ser executados da maneira mais severa.

Madi descreveu casos de pessoas esquartejadas ou queimadas vivas, e disse que os médicos sabem a natureza desses crimes pelo estado em que chegam os cadáveres. A IPS confirmou tais afirmações com médicos que pediram para não serem identificados.

Em um informe de agosto de 2009 a organização de direitos humanos Human Rights Watch, com sede em Nova York, assegurou que muitas das vítimas eram torturadas para se obter nomes de futuros objetivos. Em vários casos, foram descritos tormentos como o uso de cola de contato no ânus que, com a ingestão maciça e forçada de alimentos e laxantes, leva a vítima a uma morte atroz.

O mal-estar por esta onda de violência é tangível inclusive atrás dos muros da Zona Verde, a área protegida da capital onde ficam escritórios do governo e embaixadas. “Não fizemos mais do que retroceder quanto aos direitos humanos desde 2003”, ano da invasão norte-americana, lamentou a parlamentar Ashwaq Jaf, da Aliança Curda. “O problema principal é que estamos sujeitos a dois códigos, a Constituição iraquiana, por um lado, e a shariá – conjunto de leis islâmicas – de outro. As contínuas contradições entre ambas desembocam em vazios legais e, por conseguinte, no desamparo das vítimas”, disse Jaf à IPS. Mas, nem todos nos órgãos de poder concordam com essa visão.

“O estigma de ser homossexual no Iraque não passa de um claro reflexo de nossa sociedade”, disse Saad al-Muttalibi, alto representante do partido Dawa, do primeiro-ministro Nuri Al Maliki. Muttalibi responsabiliza pelos crimes “milícias sunitas próximas à Al Qaeda ou milícias iranianas”, sem mencionar as xiitas de Al Sadr. O segundo mandato de Maliki foi possível pela maioria conseguida na coalizão com o Bloco Sadr.

Sunitas e xiitas professam adesão a dois ramos divergentes da religião muçulmana. Os xiitas são 60% da população deste país. Os sunitas, minoria em torno dos 20%, eram o grupo islâmico dominante no regime de Saddam Hussein. “A situação vai normalizando aos poucos e cada vez é mais fácil ver casais de rapazes andando de mãos dadas por Karrada”, assegurou Muttalibi.

Certo, ou não, a maioria dos comerciantes desse concorrido distrito já retiraram das vitrines caveiras, correntes e qualquer outro objeto que possa levar a trágicos mal-entendidos. Envolverde/IPS