Por Rubens Harry Born* –
A lista de alertas é longa, seja no Brasil ou no mundo: as chuvas intensas no Rio Grande do Sul, em maio deste ano e no segundo semestre de 2023, após um período de severa estiagem no mesmo ano; chuvas e inundações no Maranhão; a constatação de que áreas do semiárido nordestino se tornaram áridas, agravando os desafios de sobrevivência e convivência digna na caatinga; temporais e deslizamentos de encostas no litoral paulista; seca e aumento de riscos de incêndio no Pantanal.
Em outros países, há relatos de importantes impactos e transformações ambientais: rios do Alasca, EUA, ficando alaranjados, por decorrência de efeitos combinados da liberação de elementos químicos após o derretimento anormal do permafrost (solo congelado), afetando a biodiversidade aquática; o calor excessivo na Índia, em faixas de temperatura acima dos 50oC; a redução em proporções acima do esperado do gelo na Antártida, o que afetará o aumento do nível dos oceanos e impactos em regiões costeiras.
A OMS – Organização Mundial da Saúde, em sua recente assembleia, no final de maio de 2024, adotou resolução para reconhecer as ameaças iminentes à saúde humana decorrentes das mudanças do clima. Globalmente, segundo relatório de 2023 da Organização Meteorológica Mundial, a temperatura média do planeta no decênio 2014-2023 foi de cerca de 1,20 oC acima da média de 1850 a 1900, sendo considerado então um período decenal mais quente já avaliado pelos cientistas. Estudos científicos também apontam que no ano de 2023 o planeta teve a maior temperatura média nos últimos 125 mil anos. Dessa forma, o planeta já sofreu um aquecimento médio muito próximo do objetivo do Acordo de Paris para limitar o aquecimento global ao aumento de 1,5 oC até o fim do século.
Ora, as causas das mudanças do clima, da degradação da biodiversidade e da poluição são conhecidas há décadas. As convenções da ONU sobre clima, biodiversidade e desertificação são produtos da Cúpula da Terra ou Rio-92, a grande conferência realizada no Rio de Janeiro em 1992. Vinte anos depois, a Rio+20, outra conferência da ONU na mesma cidade, buscou retomar promessas e compromissos negligenciados, mediante pacto de ações para os ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, uma “nova narrativa” para as promessas da Agenda 21, adotada na Rio-92.
Vale lembrar que as crises ambientais não podem ser tomadas isoladamente. Reconhecem-se também crises nas dimensões sociais, econômicas e políticas, reveladas pelo crescente número de pessoas deslocadas em razão da pobreza e da desigualdade, fenômenos que estão associados, muitas vezes, às crises ambientais. Em 1987, a Comissão Mundial de Desenvolvimento Sustentável, a Comissão Brundtland, em seu relatório “Nosso Futuro Comum”, afirmara que não são crises isoladas: são facetas de uma única crise civilizatória, de padrões perversos, injustos e degradantes de sistemas econômicos que torna indigna a vida de bilhões de pessoas, não obstante o progresso científico e evolução de direitos humanos.
E parece que as tragédias, como a que continua em curso no Rio Grande do Sul, não são capazes de mudar condutas e decisões de muitos empreendedores privados, de diversos parlamentares e agentes públicos de governos: o desmatamento no cerrado ultrapassou (em percentagem) o da Amazônia; a expansão da exploração de combustíveis fósseis é defendida também por setores de governos, no Brasil e em outros países; os mecanismos de “comércio de carbono” não geram, globalmente, melhoria (diminuição) na concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo o IPCC – Painel Científico da ONU sobre Mudanças do Clima, as emissões antrópicas de gases de efeito estufa terão que ser reduzidas em 43% até 2030, em relação aos níveis existentes em 2019, e chegar a um balanço neutro (“emissões zero”, resultado da emissão e da captura de gás carbônico em atividades como recuperação de florestas) até 2050. E para que a chance de estabilizar a temperatura global do planeta, o IPCC indicou que será necessário reduzir em 60% o uso de petróleo, 45% do gás natural e 95% de carvão mineral.
A prevenção de riscos de ocorrência de desastres associados às formas insustentáveis de uso do ambiente também têm sido “esquecidas” por muitas lideranças, no Poder Público e nos setores econômicos. As tragédias do rompimento de barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho e as enchentes no RS são alguns exemplos.
Um importante tratado internacional estabeleceu, em 2018, que “em caso de ameaça iminente à saúde pública ou ao meio ambiente, que a autoridade competente divulgará e disseminará de forma imediata e pelos meios mais efetivos toda informação relevante que se encontre em seu poder e que permita ao público tomar medidas para prevenir ou limitar potenciais danos”. E mais, que cada país que ratificar esse tratado “deverá desenvolver e implementar um sistema de alerta precoce utilizando os mecanismos disponíveis”. Trata-se do Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, conhecido como Acordo de Escazú, em vigência internacional desde 2021. Assinado pelo Brasil em 2018, o acordo somente foi encaminhado ao Congresso Nacional em maio de 2023, mas sua tramitação não foi acelerada e sequer foi aprovado ainda na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. A letargia e eventual omissão de parlamentares para a aprovação de tal acordo certamente não passará despercebida nos processos internacionais liderados pelo Brasil da Cúpula do G20, em 2024 no Rio de Janeiro, e da 30ª Conferência das Partes (CoP30) do regime de mudanças do clima, em 2025 na cidade de Belém, Pará. Tivesse sido ratificado e em cumprimento pelo Brasil, possivelmente as condições para enfrentamento das tragédias socioambientais poderiam ser outras.
O Acordo de Paris
O Acordo de Paris, de 2015, reconheceu, em seu preâmbulo, que os compromissos dos países (as NDCs – Contribuições nacionalmente determinadas), ainda que se plenamente cumpridos, não são suficientemente seguros para o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5 oC, e isso foi novamente reconhecido na recente 28ª Conferência das Partes (CoP 28) da Convenção da ONU sobre Mudanças do Clima, realizada em Dubai em dezembro de 2023. As emissões acumuladas de dióxido de carbono (CO2) já somam cerca de 80% do total que deveria ser o limite indicado pelos cientistas para se garantir a probabilidade de 50% de fazer o planeta não ultrapassar 1,5 oC de aquecimento global.
Tal monumental esforço vai requerer, por exemplo, a recuperação de áreas que já foram florestas e outros ecossistemas de cobertura vegetal, o que nos ajudaria também a fortalecer a resiliência de áreas mais vulneráveis, a diminuir os riscos e impactos das crises ambientais. Isso é importante, sobretudo para Brasil e outros países em que o desmatamento e a perda da biodiversidade são componentes da crise ambiental. Mas só plantar árvores e proteger florestas não será suficiente. Será necessário fazer a transição para a agricultura ecológica e de baixo carbono, com produtos mais saudáveis; sistemas de mobilidade menos poluentes, de energias limpas e sustentáveis; reorientar as formas e padrões urbanísticos e das edificações, para que demandem menos energia (por ex: ar condicionado e iluminação). Também é importante a transição energética, para o mais rapidamente diminuir o uso de combustíveis fósseis, fonte de mais de 75% das emissões de gases de efeito estufa. A CoP28 sinalizou, em uma de suas decisões, tal diretriz, cujo cumprimento dependerá da “vigilância” de todas as pessoas.
Governança democrática ambiental
Essa “vigilância” tem nome: governança democrática ambiental. Torna-se possível mediante condições de acesso a informação e participação, regras para tomada de decisão etc. que permitem à coletividade a gestão democrática dos rumos do Estado, da atividade econômica e da sociedade. Ou, como formulei o conceito, em 2007, de governança como “conjunto de iniciativas, regras, instâncias e processos que permitem às pessoas, por meio de suas comunidades e organizações civis, a exercer o controle social, público e transparente, das estruturas estatais e políticas públicas, por um lado, e das dinâmicas e das instituições do mercado, por outro lado, visando atingir objetivos comuns de bem estar, de direitos e dignidade de vidas.” Meios que precisa ser consistentes com a finalidade de sociedades justas, democráticas e sustentáveis. Enfim, ainda repetindo continuação da minha formulação, precisamos de “modos de vida e de organização social que viabilizam a vida digna de todos, da presente e das futuras gerações, com base em sistemas democráticos do exercício de direitos e deveres, para a fruição de ambientes saudáveis e com paz, conservando os processos ecológicos essenciais, os bens e serviços ecossistêmicos do planeta, assegurando a justiça e a equidade.
Tudo isso requer termos consciência sobre os valores éticos e de justiça que propiciem a humanidade fazer a transição solidária para a sustentabilidade planetária. Transição que deve ser necessariamente acompanhada pela busca da paz. Que possamos aproveitar o dia da semana do meio ambiente para a necessária evolução da civilização humana. E que os 365 dias de cada ano sejam oportunidades de ações e condutas com responsabilidade para com a integridade ambiental e justiça social.
*Rubens Born, diretor da Fundação Esquel, presidente do Conselho Diretor do Idec – Instituto de Defesa do Consumidor, membro da coordenação do FBOMS – Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, colaborador do Fundo Casa Socioambiental. Há 45 anos atuando em temas de Meio Ambiente. Engenheiro civil com especialização em engenharia ambiental, advogado, mestre e doutor em saúde pública ambiental.