A pedido de um dos autores, a jornalista Danuza Milani aceitou realizar uma leitura crítica do livro A Caveira de Hamlet ainda no formato de manuscrito. Ao final, propôs realizar um papo-entrevista com ambos, Homero e Fernanda, sua filha, para responder à pergunta do título, que – segundo disse – lhe assomou durante a leitura.
Argumentou que via no livro mais do que um conjunto de questionamentos com interessantes ou instrutivas respostas, e gostaria de explorar com os dois essa sua visão. Ambos assentiram e eis o que resultou.
Danuza: O que os motivou a escrever este livro?
Homero: Todos conhecemos a expressão “grito parado na garganta”. Aplica-se aqui, até certo ponto. Há coisas que, se não são ditas, oferecidas em compartilhamento, acabam adoecendo quem as retém. Talvez essa explicação seja genérica demais… Que autor não se torna tal justamente porque tem algo a dizer ou expressar? Mas há mais, no nosso caso, e acho que foi disso que você suspeitou…
Danuza: É verdade. Que seria então esse algo adicional, no caso deste livro?
Homero: Para situar-nos melhor, tenho que declarar que nenhum de nós, nem minha filha Fernanda nem eu, temos tradição alguma como escritores. Permanecemos sempre – e eu, por condições etárias óbvias, por muito mais tempo – do lado de cá, do lado dos leitores, e leitores gulosos, devoradores de páginas e páginas de papel e, hoje em dia, também de caracteres nas telas eletrônicas. Minha motivação pessoal para me enfiar nessa empreitada em momento avançado da minha existência foi fazer um convite e uma provocação.
Danuza: Muito bem. Então explique melhor esse convite e essa provocação.
Homero: A ideia é que este livro, cujo título leva o aposto de “questionamentos mal comportados”, atue nos leitores como uma metamensagem, que seja também um metalivro, e já vou explicando isso para não aborrecer você com um excesso de rodeios. Ele assume a condição de metamensagem quando sugere: todos nós, cidadãos comuns, podemos lidar com temas profundos e de longo alcance e sair do rebanho a que alude Nietzsche em sua obra Da Genealogia da Moral. Esta é a provocação: saiam do rebanho dos certinhos e comecem a pensar suas vidas livremente – a liberdade não é universalmente aceita como um bem supremo? –, a pensar seus entornos, as instituições, ainda que sejam cidadãos comuns que não ostentem uma titulação acadêmica ou não sejam especialistas. Não existe essa coisa de ser “especialista em vida humana”: a vida de cada um de nós é para ser vivida e entendida na amplitude capaz de nos tornar maiores por dentro, ou mais realizados nas nossas potencialidades, a cada ciclo de tempo que passa. Ou ainda mais felizes… se conseguirmos extrair satisfação dessa autonomia conquistada, o que significa não sermos pautados sobre o que e como pensar. Não necessitamos de terceiros que nos digam o que é melhor para nós. Mas, para essa conquista, há três condições: estar disposto a ser verdadeiro consigo mesmo, crer na própria capacidade criativa e exercê-la efetivamente criando visões próprias. Nesse sentido, este livro é uma demonstração do “livre pensar”, do questionar, do não comprar pelo preço de etiqueta o que nos querem vender como o melhor e que, muitas vezes, nos custa justamente nossa liberdade e nossa identidade. Nesse sentido é que se coloca como um metalivro, portador de uma provocação um tanto barackiana: “Todos nós podemos. Você pode!”.
Danuza: Esta é a provocação. E o convite, qual é?
Homero: Talvez provocação e convite se mesclem de alguma forma, mas a primeira é mais forte e decisiva, sem o que não cabe o segundo. O convite é que nesse processo de desfazer as amarras não optem por caminhos acanhados e triviais, desfaçam-se das verdades instituídas ou pelo menos as questionem e concluam por si. Busquem o que está na raiz do que incomoda ou do que julgarem inadequado, aceitem as evidências que encontrarem, não se prendam a um único saber: exercitem a transdisciplinaridade, ajustem se necessário sua visão de mundo.
Danuza: Isso é tudo quanto ao livro?
Homero: Claro que além dessa metamensagem que comentei, o livro, qualquer livro, tem que oferecer um conteúdo suficientemente atrativo para ser lido e, antes disso, tem que sugerir um valor aparente para ser adquirido. O teor de A Caveira de Hamlet é denso, reconhecemos isso, mas procuramos tratar os vários temas de uma forma casual e lúdica, como ocorre nas rodas de papo, onde costumamos expor nossos desconfortos, reclamações, indignações em relação àquilo que vivemos ou experimentamos, e disso tiramos algum proveito, no mínimo é catártico. Mas como construção estruturada a coisa habitualmente acaba morrendo aí… E no nosso caso, virou publicação.
Danuza: Nota-se pela leitura que cada um de vocês dois assume papéis bem definidos ao longo dos capítulos. Como é isso?
Fernanda: É interessante, Danuza, até mesmo necessário, remontar a como tudo começou. Fazia já algum tempo que meu pai dizia que há um sem número de aspectos da sociedade que são sempre tratados de forma desconectada entre si, principalmente no que diz respeito ao hoje tão em voga conceito de sustentabilidade e ás ideias consagradas pela teoria econômica. Depois que voltou de uma viagem à Índia, onde pôde conhecer novas formas de organização da produção, achou que tinha que juntar todas essas peças numa formulação razoavelmente unificada que nunca tinha encontrado nos vários modelos que andam por aí. Passou por um período de desânimo, depois de indignação e, como fruto desse desconforto decidiu que ia parir um livro, e me convidou para ser sua parceira. Ele diria como estava percebendo as coisas e eu, como acadêmica, buscaria no amplo domínio do pensamento filosófico quem e quando tinha abordado as várias temáticas de que ele tratasse, e quais haviam sido as propostas de então. Assim, entabularíamos um diálogo entre a experiência descompromissada e o saber estruturado, o que, de fato, foi por mim exercido com uma certa liberdade coloquial menos usual num contexto universitário. Nesse vai e vem de conversas e mais conversas, nós os autores terminamos por ser personagens de nós mesmos, assim como inúmeros protagonistas que intervieram e que são fictícios. É que, na verdade, nós dois nunca cumprimos os passeios e as rotinas que são relatados e, em certos cenários, nem mesmo estivemos juntos – ao menos em corpo físico… (risos) É certo que em alguns capítulos retratamos diálogos com pessoas reais, que de fato participaram, mas as circunstâncias em que ocorreram essas trocas não são factuais: foram construídas para se ajustar a uma narrativa romanceada.
Danuza: Como vocês coordenaram toda essa produção?
Fernanda: Fizemos inicialmente uma sinopse do livro, mas assim mesmo ficamos um tanto perdidos quanto a por onde começar. Foi então que meu pai teve a ideia de propor que cada capítulo fosse um post a ser publicado em um blog. Criaríamos um blog somente para isso? Era uma dúvida. De repente, conversando com sua amiga Christina Carvalho Pinto, que dirige o portal de sustentabilidade Mercado Ético, recebeu dela a oferta da criação de um blog nesse site para hospedar os posts: criamos o nome do blog – Repaginando – e fomos em frente, postando periodicamente matérias mas conscientes de que estávamos escrevendo um livro. A coisa foi fluindo organicamente, um tema puxando o seguinte. As dificuldades com a distância de quase três mil quilômetros que nos separa, ele na região de São Paulo, eu no Rio Grande do Norte, foram vencidas mediante o uso de meios tecnológicos: Skype, gravações de voz e transcrições, idas e vindas de e-mails, com alguns encontros presenciais de permeio – mas para nós foi tudo muito divertido! Sendo o Mercado Ético um site de alta frequência de visitas, fomos obtendo notoriedade e, o que é mais importante, recebendo feedback sobre o que publicávamos. A boa aceitação dos textos de fato foi o empurrãozinho final para nos animar a publicar tudo, claro que com os ajustes necessários, sob a forma de livro.
Danuza: Uma coisa de certo modo me intrigou no livro, durante a leitura crítica. Não há notas de rodapé, nem bibliografia, tampouco algo como um índice onomástico ou remissivo. Qual a razão de ter sido assim?
Homero: Bem, claramente A Caveira de Hamlet não é um livro didático, muito menos, uma obra acadêmica ou uma leitura de passatempo. É um conjunto de reflexões, sob a forma de diálogos ou de trocas remotas de notas. O subtítulo já diz: questionamentos, não proposições assumidas como verdadeiras e que, portanto, careceriam de respaldo em autores consagrados ou no conhecimento científico. Quando conversamos sobre algo não entremeamos a conversa com citações de fontes, páginas, ou casas editoras. Fernanda e eu trocamos ideias sobre isso e tomamos essa decisão: nada de referências. As menções a autores ou livros, ou figuras ilustres, que surgiram no conversatório ou na troca de textos estão lá já explicitadas, com menção ao autor e ao contexto ou obra. Está certo que isso complica às vezes para um leitor menos informado, mas seguimos a máxima de Saramago: as pessoas devem ler livros que estejam acima da sua compreensão imediata, só assim se constrói um conhecimento novo. Por sorte, hoje em dia há uma infinidade de meios de aprofundar por conta própria uma leitura, seja a partir de simples buscas no Google, no Yahoo ou no Bing, até consultas a dicionários eletrônicos – e os de papel ainda existem… A Amazon.com e outras livrarias online chegam a publicar junto com os livros à venda críticas espontâneas de leitores comuns, não de críticos profissionais, tornando possível saber o que leitores pensaram de um livro antes mesmo de que o compremos. As fontes e demais referências que resolvemos não publicar à parte estão disponíveis para quem quiser ir além, aprofundar-se, ou meramente decifrar palavras ou conceitos mais complexos. É só ir atrás… Faz parte da nossa intenção criar esse hábito, faz parte da ideia de metalivro.
Danuza: Está bem, convenhamos que essa é uma postura não tão usual… Agora, quanto à edição. Transformar um conjunto de escritos num livro não é uma tarefa trivial. Fale um pouco sobre isso.
Homero: O curioso é que a ideia de estruturar o livro em torno do conceito da caveira se deu quase no final da série de posts. Mas parecia que já estava latente, inconscientemente, desde o início, nós é que não nos dávamos conta disso, cada produção ditava a próxima. Foi, como disse a Fernanda, tudo muito orgânico… Agora, Danuza, voltando ao princípio, com seu questionamento – questionamentos são sempre bem-vindos! –, para que serve um livro como este? Eu diria que nem sabemos ainda se servirá para algo… Convenhamos, os leitores é que terão a palavra final, ou melhor, vai depender dos humores do deus mercado. Para saber mais sobre esta divindade, leiam o livro! (risos)
* Texto integrante do preâmbulo de A Caveira de Hamlet, Editora Canal6, onde o livro pode ser adquirido online, em condições especiais. Está também disponível na Amazon.com, no formato de e-book.
** A personagem Danuza Milani, aqui mencionada, é totalmente fictícia, e sua relação com pessoas reais, de mesmo nome ou com características semelhantes, será pura casualidade.
*** Publicado originalmente no Blog Repaginando e retirado do site Mercado Ético.