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Consumismo infantil e descondicionamento da consciência

Um planeta limitado não sustenta um crescimento ilimitado. O consumo crescente resulta de demandas humanas, que podem corresponder a necessidades básicas utilitárias ou a desejos supérfluos que atendem a caprichos, a sonhos simbólicos ou de status social.

A percepção do mundo, condicionada pela educação, pela comunicação e pela ambiência cultural, forma os pensamentos e a consciência, que dão origem às demandas de consumo. Demandas que, por sua vez, geram impactos sobre o ambiente.

A consciência infantil é altamente vulnerável às mensagens que recebe nas escolas, na família e quando exposta aos meios de comunicação. Por isso, marqueteiros e publicitários, com o apoio de psicólogos, neurocientistas, e com a criatividade artística de designers e escritores, transformaram a criança em alvo preferencial de suas mensagens. Na pesquisa acadêmica avançada, há especialistas em marketing infantil. Enquanto os pais trabalham, profissionais com conhecimento e talento produzem comerciais para vender de tudo.

As crianças deixaram de ser uma faixa etária e passaram a ser consideradas como uma faixa de consumidores. Crianças são um segmento da população extremamente vulnerável à propaganda. No Brasil, pesquisa Ibope realizada em 2011, mostrou que as crianças estão expostas a mais  de 5 horas de tempo médio diário diante da TV, a babá eletrônica que as bombardeia nos merchandisings  e na propaganda subliminar que sequer percebem que estão recebendo. Elas navegam ao mesmo tempo na web, na MTV, no iPod, e são como esponjas que recebem  e absorvem 3000 comerciais por dia. A infância e a pré-adolescência são estágios da vida humana especialmente sensíveis e receptivos. Comerciais de 30 segundos são suficientes para uma marca influir na criança. As crianças hoje reconhecem marcas com maior facilidade do que identificam animais ou frutas.

Nos últimos anos, tem surgido varias análises e denúncias sobre tal questão, na forma de livros, teses, filmes. Também têm sido formuladas respostas a esse problema na forma de leis que regulamentam a publicidade infantil, e de programas de orientação para escolas e pais.

Um filme contundente, disponível no Youtube, é “A comercialização da infância”. Realizado em 2008, tem 60 minutos de duração e legendas em português. O filme mostra que a criança é uma faixa de consumidores que, nos Estados Unidos, movimenta US$40 bi/ano em roupas, música e eletrônicos; ela movimenta US$700bi/ano ao influenciar na compra de computadores, carros, celulares, das férias da família.  Por seu poder na economia são alvos do marketing de marcas, do marketing viral, do marketing de imersão e muitas outras formas. Crianças pressionam pelo consumo; mães de família não são apenas influenciadas pelos filhos, mas são pressionadas por eles para comprarem algo. Reclamação, birra, insistência são armas que as crianças usam para conseguirem seus objetivos. O filme mostra que desde os anos 70 se pensava em proibir a publicidade voltada para menores de 8 anos, pois essa faixa etária é facilmente enganada pela persuasão. Nos anos 80, nos Estados Unidos, o governo Reagan decidiu desregulamentar a publicidade, com o argumento que não é necessária uma babá federal para proteger as crianças. Isso levou a um aumento exponencial no volume de publicidade voltada para crianças, de 4,2 bilhões de dólares em 1984 para 40 bilhões de dólares em 2010.  Os marqueteiros procuram forjar vínculos emocionais, por meio do bombardeio de mensagens e historias em quadrinhos. Usam-se personagens que elas compreendem e amam, que as confortam e lhes dão referências para sua estabilidade. A publicidade busca a lealdade da criança a uma marca, do berço ao túmulo. Procura viciar a criança em produtos variados: biscoitos e junk food, roupas de cama, camisetas. Anúncios são personalizados. Marqueteiros agem como pedófilos, mapeiam os hábitos infantis, querem imprimir suas marcas nas crianças; tornam-se especialistas em crianças, possuem suas mentes e emoções, que são examinadas e dissecadas detalhada e sistematicamente; por meio de testes de piscar de olhos e outros, estuda-se o que ocorre os cérebros das crianças. Estuda-se como o produto as afeta, como usam o shampoo no banheiro; promovem-se festas de marketing de grupos que ensinam as crianças a explorar os amigos. Em laboratórios de controle mental, criam-se sonhos, desejos, ambições, controlam-se as crianças pelo controle remoto, e elas influenciam na tomada de decisão dos pais. A identidade é definida em termos simbólicos e de status pelo que compra, o que tem e o que possui. Uma criança que não tem uma roupa, um tênis, um celular, não vale nada, fica sem autoestima. A mensagem é que, para ser, é preciso ter Mais do que objetos, produtos e serviços, vendem-se valores simbólicos e culturais. Elas não são poupadas sequer na escola, com anúncios nas paredes das salas de aula. A escola leva alunos para passear em shoppings e publicidade é afixada nos ônibus escolares.

No Brasil, o Instituto Alana formula propostas sobre como enfrentar essa questão. Em Mercantilização da infância, um problema de todos, Isabella Henriques e Laís Fontenelle mostram que o consumismo infantil decorre da formação de valores materialistas. Ele provoca distúrbios alimentares, erotização precoce, estresse familiar, diminuição de brincadeiras criativas, violência pela busca de produtos caros, consumo precoce de álcool e tabaco, encorajamento do egoísmo, da passividade, do conformismo, enfraquecimento dos valores culturais e democráticos. Aumenta a obesidade infantil, diabetes, e agudiza crise na saúde pública. 16% das crianças americanas hoje são obesas. O trabalho afirma que “a publicidade voltada ao público infantil é intrinsecamente carregada de abusividade, pois para seu sucesso se vale justamente da deficiência de julgamento e experiência da criança. A comunicação mercadológica que se dirige à criança não é ética ao utilizar técnicas e subterfúgios de convencimento dirigidos a uma pessoa vulnerável. As crianças não têm condições de entender as mensagens publicitárias que lhes são dirigidas; não conseguem distingui-las da programação; compreender seu caráter persuasivo e não conseguem identificar a publicidade como tal”.

Em 2012, o Ministério do Meio Ambiente e o Instituto Alana lançaram a cartilha Consumismo infantil: na contramão da sustentabilidade. Nela se realça a importância da ação conjunta da família, das escolas, dos movimentos sociais e organizações do 3º Setor, do empresariado e do Estado. Propõe-se valorizar o brincar, ocupar espaços públicos, ganhar doar, trocar, consumir lanches saudáveis, ter contato com a natureza, cuidar das embalagens. Essa cartilha afirma que “Também é fundamental que até os 12 anos as crianças sejam protegidas dos apelos para o consumo e que aprendam a lidar com o consumo sempre com a mediação de adultos. Só assim elas serão capazes de desenvolver espírito crítico”. Nos estágios evolutivos da criança, é dos 10 aos 12 anos que se inicia o senso crítico autônomo.

Em março de 2012 surgiu no Brasil o Movimento por uma infância livre de consumismo. Ele se apresenta como um coletivo de mães, pais e cidadãos inconformados com a publicidade dirigida às crianças. Considera que a regulamentação feita pelo próprio setor atende aos interesses empresariais e não está preocupada com a saúde e o bem-estar das crianças. Acredita que o Estado deve intervir e que não se pode responsabilizar somente os pais e as mães por um problema que afeta toda a sociedade.

Também em 2012, o MMA formou grupo de trabalho que envolve vários  os ministérios da saúde, da educação, secretarias de direitos humanos e do consumidor, para coordenar ações e articula-las(ver a matéria Em busca de uma infância mais sustentável em O Globo, 25-11-2012).

Juristas e políticos debatem a necessidade do Congresso regular a publicidade voltada para as crianças. A Constituição Federal, no Art. 227 postula que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (…)” O Código de Defesa do consumidor proíbe toda publicidade enganosa ou abusiva e diz que “É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais.”  Recentemente o Congresso discutiu projeto de lei que proíbe a vinculação de brindes à venda de alimentos, para evitar essa manipulação comercial das consciências das crianças. Os congressistas têm o poder e a atribuição de elaborar leis que regulem ou coíbam a propaganda abusiva, e são alvo dos lobbies das indústrias no sentido de neutralizar tais iniciativas.

Sobre a regulação, uma publicitária me escreveu a seguinte mensagem: “Eu achava que a proibição da publicidade infantil era um caminho simplista demais, já que o problema está também no conteúdo dos programas infantis, que são largamente consumidos nos lares brasileiros sem acompanhamento dos pais ou responsáveis. Mas depois que passei férias na casa de uma amiga, mudei de ideia. Essa amiga e o marido sempre proibiram os três filhos de assistirem TV. A TV na casa deles só é ligada para a família assistir filmes/DVD. Fiquei muito impressionada com as coisas que vi naquela casa: pais e filhos integrados e participativos, crianças felizes, calmas, de hábitos saudáveis, sem nenhum consumismo, com uma estrutura intelectual sólida, enfim, com uma moral que lhes valerá para o resto da vida”. Em vários países, tais como a Suécia, a Inglaterra, os Estados Unidos, o Canadá, a Noruega, a Irlanda, a Dinamarca, a Holanda, a Bélgica, a Áustria, Portugal e Luxemburgo, há legislação que regula o tema. Ela comenta sobre isso: “Para essas sociedades, eleger uma programação televisiva livre de conteúdos publicitários direcionados a crianças/adolescentes é uma opção por colocar os direitos dessas crianças acima de outros interesses. É tratá-las como pessoas em processo de desenvolvimento, e não como consumidores. É fortalecer as famílias, ampliando seu poder de escolha ao eliminar a influência da publicidade no diálogo com os filhos. É fazer valer a máxima de que crianças e adolescentes são prioridade absoluta. E foi exatamente isso que senti com eles, as crianças são realmente crianças, o adolescente é realmente adolescente e os pais são realmente maduros”.

Empresas e organizações podem atuar com responsabilidade e ética, dirigindo apelos de consumo aos pais e não às crianças, e o estado deve atuar na regulação.  Assim, por exemplo, pode-se contrapor à publicidade comercial que exacerba desejos de consumo, outras forças, que neutralizem e minimizem os impulsos em direção a esse tipo de desejo, que pressiona a natureza. Da mesma forma como o marketing e a publicidade atuam sobre o inconsciente e excitam o desejo de consumo, também poderiam, caso houvesse consciência, vontade e impulso coletivos, promover o desejo por saúde ambiental, bem como a redução da demanda por bens cujo processo de produção é destrutivo, degradador, poluidor, emissor de gases de efeito estufa.  A ecologização da publicidade é um dos caminhos para se ecologizar as consciências.

*  Maurício Andrés Ribeiro é autor de Ecologizar e de Tesouros da Índia para a civilização sustentável.