Criança branca pintada de índio em escola de classe média alta é hype. Criança índia desterrada esmolando no semáforo é kitsch. Índio só é fofo se vem embalado para consumo.
Hoje, 19 de abril, é Dia do Índio. Data boa para lembrar qual sociedade é, de fato, composta por selvagens. Vamos celebrar:
Dia do Índio se tornar escravo em fazenda de cana no Mato Grosso do Sul.
Dia do Índio ser convencido que precisa dar sua cota de sacrifício pelo PAC e não questionar quando chega a nota de despejo em nome de hidrelétricas com estudo de impacto ambiental meia-boca.
Dia do Índio armar um barraco de lona na beira da estrada porque foi expulso de sua terra por um grileiro.
Dia do Índio ver seus filhos desnutridos passarem fome porque a área em que seu povo produziria alimentos foi entregue a um fazendeiro amigo do rei.
Dia do Índio ser queimado em banco de ponto de ônibus porque foi confundido com um mendigo.
Dia do Índio ser chamado de indolente.
Dia do Índio ter ignorado o direito sobre seu território porque não produz para exportação.
Dia do Índio ter negado o corpo de filhos assassinados em conflitos pela terra porque o Estado não faz seu trabalho.
Dia do Índio se tornar exposição no Zoológico da maior cidade do país como se fosse bichinho.
Dia do Índio ser retratado como praga em outdoor no Sul da Bahia por atravancar o progresso
Dia do Índio tomar porrada na Bolívia, no Paraguai, na Colômbia, no Peru, no Equador, no Chile, na Argentina, na Venezuela porque é índio.
Dia do Índio ser motivo de medo de atriz de TV, que acha que um direito de propriedade fraudulento está acima de qualquer coisa.
Dia do Índio entender que a invasão de nossas fronteiras é iminente e, por isso, ele precisa deixar suas terras para dar lugar a fazendas.
Dia do Índio sofrer preconceito por seus olhos amendoados, sua pele morena, sua cultura, suas crenças e tradições.
Enfim, Dia do Índio se lembrar quem manda e quem obedece e parar com esses protestos idiotas que pipocam aqui e ali. Ou será que nós, os homens de bem, vamos precisar de outros 511 anos para catequisar e amansar esse povo?
* Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Já foi professor de jornalismo na USP e, hoje, ministra aulas na pós-graduação da PUC-SP. Trabalhou em diversos veículos de comunicação, cobrindo os problemas sociais brasileiros. É coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
**Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.