Prestadoras de inestimáveis serviços ambientais, elas sucumbem a agrotóxicos, monocultura, manejo inadequado. Como viverá a humanidade se desaparecerem?
Em sua recente participação no III Encontro Internacional de Agroecologia, em Botucatu (SP), a cientista indiana Vandana Shiva lembrou a tragédia que a levou a estudar o impacto da indústria química na agricultura: o vazamento de 42 toneladas de um gás letal na fábrica de pesticidas da Union Carbide em Bophal, na Índia, em 1984, causando a morte de três mil pessoas e sequelas permanentes em mais de 100 mil. O presidente da empresa norte-americana, Warren Anderson, teria fugido do país em avião do governo, dias depois, abandonando na fábrica toneladas de produtos químicos perigosos, entre eles DDT – que estão lá até hoje.
A origem da tragédia, lembra Vandana, está na chamada Revolução Verde, imposta pelos Estados Unidos em sua área de influência geopolítica nos anos 1960 para ampliar o mercado de produtos agrícolas e agroquímicos – fabricados a partir de armas químicas usadas na Guerra do Vietnã. O resultado desse modelo, o agronegócio, é conhecido: 65% da biodiversidade e da água doce do planeta contaminadas por agrotóxicos – caldo de cultura para a morte súbita e desaparecimento das abelhas melíferas, fenômeno batizado em 2006 de Colony Collapse Disorder (CCD), ou Desordem de Colapso da Colônia.
Prestadoras de inestimáveis serviços ambientais, as abelhas respondem pela polinização de 71 dos 100 tipos de colheita que alimentam e vestem a humanidade, segundo relatório da ONU de 2010. Às abelhas devemos, além do mel, do própolis e da cera – os aspargos, o óleo de canola e o de girassol, as fibras têxteis do linho e algodão e culturas utilizadas para forragem na produção de carne e leite, como a alfafa. A videira depende em parte do trabalho das abelhas e, com ela, a produção de vinhos. Em um mundo sem abelhas seriam impensáveis os cítricos, o abacate, o agrião… Em particular, a produção de maçãs, morangos, tomates e amêndoas.
Parece assustador – e é mesmo. A cultura de amêndoas, totalmente dependente da polinização das abelhas, é exemplo da dimensão do desastre: são hoje necessárias 60% das colmeias remanescentes nos Estados Unidos para polinizar as plantações do estado da Califórnia, responsáveis pela produção de mais de 80% das amêndoas no mundo. Nos últimos seis anos, a CCD dizimou cerca de 10 milhões de colmeias do país. A taxa de mortalidade das colônias é de 30% ao ano: das 6 milhões de abelhas existentes em 1947, restam hoje não mais que 2,5 milhões.
Desastre global. O declínio da população de abelhas foi notado em 2006, nos EUA. Quando a Europa acordou para o problema, em 2007, a CCD já atingia Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal. Ouviam-se notícias sobre o desastre no Canadá, Austrália, Brasil, e até mesmo o desaparecimento de 10 milhões de abelhas em Taiwan. “Sim, é um fenômeno global”, confirma Carlo Polidori, pesquisador do Museu Nacional de Ciências Naturais de Madri, na Espanha, onde as perdas chegam a 90%, em algumas regiões. As últimas notícias são de julho, na província canadense de Ontário, onde se perderam 37 milhões de insetos.
No Chile, onde até o ano passado a versão oficial era de que não havia evidências da existência da CCD, apicultores da região de BioBio registraram, em maio, a perda de milhões de abelhas. Como no Brasil, as chamadas externalidades negativas do modelo de exportação agroindustrial atingem em cheio o pequeno criador.
No Brasil. Registros sobre mortalidade súbita de abelhas encontram-se no país desde 2007 – no Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo. Todos ligados à exposição de pesticidas nas cercanias de áreas de monocultura – de tabaco, soja, cana, milho, laranja. “Os laranjais, que já foram importante fonte de néctar para a produção de mel, são hoje perigosos, dada a quantidade de agrotóxicos usada para combater doenças como o greening”, afirma o geneticista David De Jong, doutor pela Universidade de Cornell (EUA) e professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (SP).
Em Santa Catarina, em 2011, morreram por causas desconhecidas um terço das 300 mil colmeias existentes no estado. “Quem sente mais são as 30 mil famílias que dependem da produção de mel. Sua perda foi estimada em 6 mil toneladas”, afirma o presidente da Federação dos Apicultores e Meliponicultores do Estado, Nésio Fernandes de Medeiros. Na região de Dourados (MS), desapareceram no início deste ano cerca de 3,5 milhões de abelhas, produtoras de uma tonelada anual de mel. “Há forte suspeita de que foi provocada pela aplicação de um inseticida da classe dos neonicotinoides em um canavial”, considera Osmar Malaspina, professor da Unesp de Rio Claro (SP).
Não surpreende, assim, que nos últimos dois anos o Brasil tenha caído da 5a para a 10a posição no ranking mundial de exportadores de mel. “Menosprezamos o serviço ecológico que as abelhas nos prestam”, observa Afonso Inácio Orth, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Já em 2011 se verificava a falta de abelhas para polinizar maçãs naquele estado. O mesmo ocorre com o pepino, o melão e a melancia. Por polinização insuficiente, além de nascerem frutos com formato e sabor alterados, tem havido perda de produção de laranja, algodão, soja, abacate, café. “Através de experiências controladas verificamos que, onde colocamos mais abelhas, aumenta a produção. Na cultura de maracujá estão tendo de polinizar com a mão, por falta de abelhas”, informa De Jong.
Causas. As causas propostas são diversas: inseticidas e fungicidas, déficit nutricional associado à carência de flora natural, mudanças climáticas, manejo intensivo das colmeias, baixa variabilidade genética, vírus, fungos, bactérias e ácaros – juntas ou separadamente. Até a emissão eletromagnética de celulares já foi investigada, sem resultados conclusivos. Mas o principal fator do desastre, concordam estudiosos, é a classe de agroquímicos denominada neonicotinoides: clotidianidina e imidacloprida, fabricados pela Bayer, e tiametoxan, da Syngenta – neurotoxinas que atingem o sistema nervoso dos insetos, prejudicando olfato e memória.
“Os pesticidas são causa de perdas importantes, com certeza”, afirma David De Jong.“Temos situações de toxicidade aguda, em que as abelhas morrem de uma vez, logo após a aplicação do agrotóxico. Mas há outras em que doses subletais podem fazê-las perder o rumo e não voltar ao ninho. Doses baixas de inseticidas também enfraquecem o sistema imunológico da abelha. O fato é que, com os novos inseticidas do grupo dos neonicotinoides, estamos definitivamente perdendo muitas abelhas Apis mellifera e espécies de abelhas nativas”, adverte o pesquisador.
A avaliação confirma pesquisa realizada na Universidade de Stirling, no Reino Unido, pela equipe do professor David Goulson. O estudo comprova que os neonicotinoides, associados a parasitas e à destruição de habitats ricos em flores que servem de alimento às abelhas, são as principais razões para a perda das colônias. “Abelhas mal nutridas parecem ser mais suscetíveis a patógenos, parasitas e outros estressores, inclusive toxinas”, confirma o relatório de 2012 do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA). De fato, boa nutrição é essencial para as abelhas: o avanço das monoculturas tem para elas um efeito devastador.
O presidente da Confederação Brasileira de Apicultores (CBA) e da câmara setorial do mel em Brasília, José Cunha, revela que “esses agrotóxicos são sistêmicos. A planta se desenvolve e o produto tóxico vai para seiva, pólen, néctar, permanecendo no solo durante anos. Mesmo na rotação de culturas continua presente, atingindo o lençol freático. Os polinizadores estão pagando um preço muito alto, é um passivo ambiental incalculável”. Para Suso Asorey, secretário da Associação de Apicultores Galegos (AGA), “a colocação no mercado destes pesticidas neurotóxicos sistêmicos coincide com perdas de até 40% das colmeias.”
Estudo da Universidade de Maryland e do USDA chega a resultados ainda mais graves. Ao contaminar o pólen, misturas de pesticidas e fungicidas, algumas de até 21 tipos, levam as abelhas a perder a resistência ao parasita Nosema ceranae, relacionado à CCD. “A questão é mais complexa do que fomos levados a crer”, afirma Dennis van Engelsdorp, responsável pela pesquisa. “O fato de não ser um só produto significa que a solução não está em proibir apenas um tipo de agroquímico, mas que é necessário rever as práticas de pulverização agrícola”, diz ele. O Greenpeace lançou em abril o relatório Bees in Declive, no qual afirma ser crucial eliminar o uso dos agroquímicos que afetam as abelhas.
No Chile, os apicultores relacionam a mortandade dos insetos à aplicação de inseticidas já proibidos em outros países, mas que lá continuam legais – e também ao uso, como alimento das abelhas, de frutose e vitaminizadores feitos com milho transgênico.
Proibição. O que dizer do Brasil, campeão mundial no consumo de agrotóxicos, com mais de um milhão de toneladas anuais – sem contar o que é contrabandeado? Sob forte pressão do agronegócio e da indústria química, o Ibama e o Ministério da Agricultura (Mapa) proibiram o uso de agrotóxicos contendo fipronil (um pirazol) e três neonicotinoides, imidacloprido, clotianidina e tiametoxam, apenas durante o período de floração das culturas.
E só depois da interdição do uso dos neonicotinoides na Itália, França, Alemanha e Eslovênia, e de muito hesitar, é que a Comissão Europeia resolveu não ceder ao lobby da indústria e, também em abril, restringir o uso desses agroquímicos por dois anos, em todo o continente. A guerra pela salvação das abelhas está, portanto, bem longe de terminar.
Sociedade de abelhas. Existem cerca de 20 mil espécies de abelhas, entre elas as melíferas, das quais cerca de 15% são insetos sociais, com forte sentido coletivo, que vivem em colônias em torno da rainha. Há as guardiãs do ninho, as que se especializam em cuidar dos ovos e filhotes, e os que se encarregam de trazer alimentos – néctar e pólen – para a produção de mel.
Cada indivíduo é um prodígio da engenharia biológica: está equipado com sensores de temperatura, dióxido de carbono e oxigênio. Seu corpo, carregado de eletricidade estática, atrai grãos de pólen que elas levam de uma flor a outra, fertilizando-as. O fenômeno tem dimensões extraordinárias, quando examinamos o trabalho coletivo. Em um único dia, uma colmeia pode fertilizar milhões de flores, numa área correspondente a 700 hectares, equivalente a 350 campos de futebol.
Amor incondicional. Mel, pólen, própolis, geleia real são produtos do trabalho da abelha melífera que nos servem de alimento e medicina. O veneno, embora possa ser mortal, é também curativo. Na Coréia do Sul, por exemplo, os insetos são colocados diretamente no corpo, nos pontos de acupuntura, em tratamentos para artrite, reumatismo e esclerose múltipla.
Para o xamanismo, cada espécie tem um espírito grupal, e esses espíritos animais integram a consciência coletiva de todas espécies, inclusive a nossa. A abelhas possuem um sofisticado sistema de comunicação, e sua vida é inteiramente identificada com o coletivo. Seriam guias da humanidade na comunicação, organização e fortalecimento das comunidades. Para o espiritismo, são exemplo de desapego e amor incondicional. Um blog espírita português propõe fazer “um zumbido global gigante” para banir os agrotóxicos da Europa, assinando uma petição.
“As abelhas são seres cuja energia primordial é o amor e, por isso, completamente isentas de medo. Tudo o que produzem é fruto dessa energia … O mel é algo que poderíamos chamar de ‘amor líquido’ e seu uso pelos seres humanos deveria ser feito em profunda reverência”, afirmam os adeptos da Comunidade Figueira, do líder espiritual Trigueirinho, em Minas Gerais.
Habitantes da Terra há mais de 60 milhões de anos, as abelhas são um dos sistemas mais importantes de suporte à vida, e revelam a íntima interdependência entre os reinos animal, vegetal e humano. Citação atribuída a Einstein que circula na internet sugere que, se elas desaparecessem hoje do planeta, a humanidade só sobreviveria por mais quatro anos. Não por acaso, sua morte é conhecida nos EUA como Armagedon das abelhas.
* Com a colaboração de Taís González.
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.